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Mentiras do capital financeiro (2)

Fuentes: Rebelión

Apesar dos vários danos causados pelo livre fluxo de capitais, seus apologistas tentam apresentá-lo como algo natural, que sempre existiu. Alguns por ignorância, outros por medo e muitos por má-fé alardeiam esta lorota como verdadeira. Mas a história e várias experiências recentes desmentem esta manipulação. Na verdade, após a II Guerra Mundial o que predominou […]

Apesar dos vários danos causados pelo livre fluxo de capitais, seus apologistas tentam apresentá-lo como algo natural, que sempre existiu. Alguns por ignorância, outros por medo e muitos por má-fé alardeiam esta lorota como verdadeira. Mas a história e várias experiências recentes desmentem esta manipulação. Na verdade, após a II Guerra Mundial o que predominou no mundo foi a existência de regras rígidas para a entrada e a saída de capitais. Este modelo, ancorado na Conferência de Breton Woods, inclusive serviu para alavancar os «30 anos gloriosos» de crescimento e estabilidade financeira do capitalismo mundial.

Conforme demonstra o economista João Machado, «o argumento de que a liberdade dos movimentos de capitais promove maior bem-estar não dispõe de fundamentação teórica coerente, nem de base empírica». Com base nos ensinamentos da história, ele enfatiza que esta mistificação ideológica tem como «objetivo derrotar, e se possível eliminar, as concepções keynesianas muito influentes até aos anos 70, e restaurar as condições da política econômica que vigoravam no fim do século XIX e no início do século XX… Este movimento anti-keynesiano pelo regresso histórico é o que costuma ser chamado de neoliberalismo» [1].

«EUTANÁSIA DOS RENTISTAS»

Até o início do século passado, o que prevalecia no mundo era o liberalismo econômico. A preocupação central dos governos era a de garantir plena liberdade do mercado, sem qualquer interferência do Estado. O desemprego, por exemplo, era visto como algo voluntário, associado à preguiça ou ao banditismo, não como efeito do capitalismo. «Essa visão era parte da concepção geral liberal de que os mercados se auto-regulam da melhor maneira; a oferta cria, no global, sua própria demanda (Lei de Say), e o equilíbrio atingido a partir do mercado garante maior satisfação social possível (ótimo de Pareto)», explica o autor.

Mas a eclosão das graves crises cíclicas do capitalismo, a explosão de conflitos e guerras e, em especial, o desenvolvimento da luta operária – que tem como ponto alto a revolução socialista na antiga Rússia – vão desalojar as teses liberais. A própria burguesia, temerosa, é obrigada a procurar alternativas mais estáveis. A publicação, em 1936, do livro Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro, do economista inglês John Maynard Keynes, terá influência teórica nesta mudança de rumo. Este «reformador do capitalismo» advertirá a burguesia de que a libertinagem do mercado colocava em perigo o seu sistema de exploração.

As propostas de Lorde Keynes, da intervenção ativa do Estado na economia, vão encontrar terreno fértil nos escombros da II Guerra Mundial. Elas serão vitoriosas na Conferência de Breton Woods, em julho de 1944, que cria o FMI. Os países signatários do acordo se comprometem a promover controles dos fluxos de capitais para evitar novos colapsos econômicos. Keynes inclusive prega a «eutanásia dos rentistas». Foi com base neste programa que os países capitalistas centrais ergueram seus Estados de Bem-Estar Social (Welfare State) e que as nações periféricas passaram pelas experiências do nacional-desenvolvimentismo.

Se os controles de capitais inexistiam antes desta fase, a partir daí eles se generalizam pelo planeta. Os economistas Fernando Cardim e João Sicsú provam que estes mecanismos duraram mais de três décadas. «Mesmo países desenvolvidos, como na Europa Ocidental, praticamente só vieram a eliminar as barreiras formais à circulação de capitais nos anos 1990. Muitos bloqueios, na verdade, permanecem, vários dos quais sob a forma de restrições regulatórias, mais do que barreiras explícitas» [2]. Eles lembram que o próprio FMI não conseguiu remover do seu estatuto o Artigo VI, que legítima a adoção de controles.

REVANCHE NEOLIBERAL

Mas as idéias keynesianas começam a desmoronar com o agravamento da crise estrutural do capitalismo, a partir dos anos 70. A primeira experiência de libertinagem financeira foi implantada no Chile do ditador Augusto Pinochet. Anos mais tarde, o fim do controle de capitais virou moda nos EUA de Ronald Reagan e na Inglaterra de Margareth Thatcher. No final da década de 80, com o nefasto Consenso de Washington, é imposto a fórceps na maioria dos países. A débâcle do bloco soviético torna dispensável o «capitalismo do medo», conforme síntese de Eric Hobsbawm, e dá alento à revanche neoliberal da desregulamentação.

Nesta vingança do mercado, o FMI passa a impor, de forma ostensiva, a remoção de qualquer barreira ao capital. Já as agências de risco, através de seus relatórios terroristas, fazem deslavada chantagem contra os governos resistentes. A ofensiva neoliberal difunde o mito de que «o dinheiro precisava de liberdade para se multiplicar. Era preciso chamar de autoritárias, e em seguida arrasar, todas as barreiras que a luta social havia construído para se defender contra a selvageria do capital: as leis de defesa do trabalho, o Estado de Bem-Estar Social, a proteção às empresas públicas, o controle das transações financeiras» [3].

A ditadura das finanças reina absoluta; a oligarquia financeira torna-se a fração hegemônica da burguesia. Só que o mundo dá voltas! Ao contrário do que havia prometido, o neoliberalismo não gerou crescimento nem estabilidade. Além de sacrificar a humanidade, ele não soluciona a crise estrutural do capitalismo. A partir dos anos 70, o mundo registra taxas anuais declinantes de crescimento do PIB; as enormes riquezas produzidas, impulsionadas pela «revolução informacional», são transferidas para a oligarquia financeira; e, para enterrar de vez o dogma liberal, as turbulências financeiras se expandem e ficam mais destrutivas!

EXPERIÊNCIAS RECENTES

Diante deste estrondoso fracasso, várias nações passaram a procurar caminhos alternativos. Os chamados «países em desenvolvimento» da Ásia, após o vendaval financeiro e cambial de 1997, tentaram superar a sua vulnerabilidade externa. Através de diversos mecanismos, muitos voltaram a adotar medidas para disciplinar a entrada e a saída de capitais. No geral, eles hoje obtêm maior sucesso econômico e maior estabilidade do que os que aplicam o modelo neoliberal ou dos que se acomodam à «herança maldita».

Num outro estudo de fôlego, Fernando Cardim e João Sicsú relatam vários casos de países que adotaram mecanismos de controle de fluxos. «A crise asiática (97/98), seguida pela crise russa, pela brasileira e por várias outras acabaram por fazer o movimento liberalizante perder o fôlego, ainda que não o revertesse. A pressão pró- liberalização cedeu lugar à preocupação com requisitos necessários para a abertura financeira. O FMI passou a reconhecer que a manutenção de certos controles poderia ser tolerada» [4]. Entre outras experiências, eles destacam o caso emblemático da Malásia, que abalou a crença no livre fluxo de capital.

Em setembro de 1998, diante do agravamento do colapso financeiro na Ásia, o governo da Malásia impôs uma série de medidas de controle da saída de capitais para defender sua moeda local – o ringgit. «Quando foram adotadas as restrições, a comunidade financeira internacional prognosticou o seu rotundo fracasso… Não só previu seu goro como efetivamente agiu contra a Malásia. A despeito de previsões frustradas e das ações adversas dos liberalizantes, os controles foram muito bem sucedidos», relatam. Barraram a fuga de capitais e a queda de reservas; com isso, o governo baixou os juros e estimulou crescimento econômico. «A recuperação malaia foi impressionante». O PIB cresceu 5,4% em 1999; 7,8% em 2000; e 7% em 2001.

Os autores também citam a China, onde as transações de capitais dependem de autorização do Estado; as operações financeiras com o exterior, de entrada ou de saída, são examinadas em detalhe. Outro exemplo é o do Índia, onde predomina o uso de restrições de natureza quantitativa e administrativa às transações de capitais.

Mesmo em países «amigáveis do mercado» há restrições, como no Chile, onde são obrigatórios depósitos quando da entrada de capitais como forma de evitar a volatilidade. Diante destas experiências, que refutam totalmente as mentiras do capital financeiro, vale a indagação do jornalista Antonio Martins, integrante da Attac (Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos):

«China e Índia, que nunca abandonaram o controle sobre os capitais, são hoje sinônimos de crescimento econômico continuado. A proposta já chegou à América do Sul. Adotada no ano passado na Venezuela, foi um dos fatores que permitiu o início da recuperação econômica. Fortalecido, o Estado foi capaz de autorizar, no final de abril, um aumento de 30% no salário mínimo. Também a Argentina aderiu à idéia, desde o início de 2003. Todas as análises sérias sobre a retomada da sua produção (crescimento do PIB em torno de 7%) sustentam que ela só foi possível porque o governo rechaçou as políticas do FMI. O que pode impedir – a não ser uma visão abertamente dogmática – que o Brasil recorra a este remédio de efeitos comprovados?» [5].



NOTAS

1- João Machado. «Fluxos internacionais de capitais e alternativas de políticas econômicas e sociais».

2- Fernando Cardim de Carvalho e João Sicsú. «Controvérsias recentes sobre controle de capitais».

3- «Para o Brasil mudar de verdade». Planeta Porto Alegre.

4- Fernando Cardim e João Sicsú. «Teoria e experiências de controles do fluxo de capitais: Focando o caso da Malásia».

5- Antonio Martins.«Alternativa ao caos». Planeta Porto Alegre.

* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e organizador do livro «Para entender e combater a Alca» (Editora Anita Garibaldi)