Desde o dia 28 de junho, segunda-feira, Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, vive uma insurreição comparável somente (dentro do histórico da cidade, claro) à Novembrada, ocorrida em 1979. Para Fábio Brüggemann, «desde a Novembrada, quando o ex-presidente João Figueiredo (…) foi escorraçado da cidade, o ilhéu não se manifestava tão furiosamente». (Diário Catarinense, […]
Desde o dia 28 de junho, segunda-feira, Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, vive uma insurreição comparável somente (dentro do histórico da cidade, claro) à Novembrada, ocorrida em 1979. Para Fábio Brüggemann, «desde a Novembrada, quando o ex-presidente João Figueiredo (…) foi escorraçado da cidade, o ilhéu não se manifestava tão furiosamente». (Diário Catarinense, 3/7/2004) Qualquer observador que não seja cego a coisas óbvias irá ver que não se trata de manobras eleitorais da oposição ou de provocação de estudantes que querem o «passe-livre», como vem propagandeando os empresários do transporte e a Prefeitura. O que há em curso na cidade é uma revolta que vai desde setores da classe média de direita até a população mais miserável de nossa cidade, cujas finanças são incapazes de suportar o ônus de pagar as altas tarifas que se vem cobrando. Como relatou um estudante da UFSC, morador do bairro Ingleses, «percebi que havia famílias inteiras protestando».
Segundo dados encontrados no site da própria Prefeitura, mais da metade da população assalariada de Florianópolis (algo em torno de 115 mil pessoas, num universo de cerca de 165 mil) recebe entre um e sete salários mínimos (MTE-RAIS/2000), ou seja, entre R$260,00 e R$1820,00. Quem recebe até quatro salários mínimos (até R$1040,00) representa mais de um terço da população assalariada as cidade. A partir da consideração de que os valores da tarifas de transporte variam entre R$1,15 e R$3,00 (sendo a maioria usuária das regiões cujos valores estão entre R$1,60 e R$2,50) não se faz, portanto, cálculos muito complexos para se chegar à conclusão do quanto pesa os valores gastos com transportes para as famílias. Em um mês, uma pessoa que tenha de se deslocar até o centro da cidade pagará entre R$105,00 e R$180,00 (antes esse custo era entre R$96,00 e R$156,00).
Segundo Daniel Passos, economista do Dieese de Santa Catarina, citado pela jornalista Marlene Prestes, antes do aumento se podia comprar 92 passagens com um salário mínimo, mas com o aumento esse número caiu para 87. «Quando a passagem» afirma Passos, «era de R$ 2,60 no norte da ilha, por exemplo, comprometia 65% do salário mínimo, agora compromete 69%». Outro dado levantado por Passos, também citado por Prestes, é o de que o aumento das tarifas (na média, 15,6%) foi superior ao aumento a renda da população (o salário mínimo aumentou 8%, o dos trabalhadores da iniciativa privada aumentou 5,6% e o dos servidores públicos municipais e estaduais foi inferior ao índice da inflação) Precisamos ainda considerar que boa parte da população de mais baixa renda reside em regiões mais afastadas, norte ou sul da ilha, ou seja, em regiões que tem as tarifas mais altas, o que acaba obrigando as pessoas a procurarem (muitas vezes sem encontrar ou encontrando apenas salários bastante baixos, ou ainda tendo de procurar empregos «informais») emprego nas regiões onde moram. Seguindo o raciocínio de que a maioria da população trabalha nos setores de serviços e comércio ou na administração pública (MTE – RAIS/99), cuja maior concentrações está nas regiões centrais da cidade, não fica difícil entender o porquê de haver tantos trabalhadores informais ou desempregados na cidade, desde os camelôs do centro até os ambulantes das praias, passando pelos vendedores de CDS e DVDs piratas etc.
A grosso modo, se poderia dizer que as menores rendas se localizam nas regiões mais distantes (pois os alugueis são mais baratos), onde as tarifas de transporte público são mais caras, o que acaba criando um lógica nefasta para a população de Florianópolis, principalmente dessas regiões, que não pode (ou tem dificuldades de) ir às regiões centrais para trabalhar. Ou seja, considerando que o nível de vida tem se elevado, que o trabalho formal tem estado em baixa (considerando o crescimento da população cidade), que as pessoas tem filhos para criar, que o reajuste do salário mínimo foi cerca de metade do reajuste médio das tarifas de transporte urbano etc., não fica muito difícil entender as razões sociais da revolta popular que há hoje em Florianópolis.
Falando mais exatamente sobre a questão do transporte, sem dúvida é preciso fazer algumas considerações. Primeiro, que há uma concessão, imposta de forma autoritária em 1999 – tendo havido inclusive confrontos entre a população e a polícia – às empresas que estão aí «prestando serviço» à população. Segundo, que as oligarquias que há tanto tempo governam a cidade tem participação sua (ou de grupos ligados a elas, ou mesmo de seus partidos, PP e PFL) nas empresas, sendo que a família Amin está na sociedade na maior empresa da capital, a Transol. Terceiro, que é no mínimo absurdo (para não dizer outra coisa) que o transporte da cidade seja controlado («gerenciamento», segundo documento da prefeitura) por uma empresa privada, cuja sociedade é formada por várias «operadoras de transporte coletivo da região» (BNDES, 6/9/2001), inclusive a acima citada Transol.
Há disponível no site da prefeitura um documento que sintetiza o Sistema Integrado de Transporte (SIT), que teve seu funcionamento iniciado há cerca de um ano. Este era um projeto mais amplo, de longa data, da prefeita Angela Amin, o qual buscaria dar solução à desordem provocada na cidade pelo crescimento do tráfego urbano. Este projeto incluía desde melhoria a pavimentação de vias até a instalação de sistemas de monitoramento de semáforo e de controle de circulação de ônibus, lombadas eletrônicas, terminais urbanos, elevados etc. Porém, submetido ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a fim de obter financiamento para as obras, a análise demonstrou que a capacidade de endividamento do município não era suficiente para atender a todo o projeto (que necessitava um total de R$78 milhões em investimentos).
Reformulado, o tal projeto, muito mais modesto, ficou reduzido a R$27 milhões, dos quais R$18 milhões viriam do BNDES. Este dinheiro seria suficiente para construir dois viadutos, mas não o suficiente para construir os Terminais Urbanos de Integração, que poderiam colocar em funcionamento o SIT. A solução foi fazer com que o BNDES financiasse empreendedores privados, em regime de concessão, para a construção e operação dos terminais. A partir daí, haverá um longo processo de negociações e deliberações, fazendo inclusive aprovar leis que «legitimassem» os empréstimos e a própria construção dos terminais. O mais interessante é ouvir a prefeitura dizer, sobre um serviço público, que a participação das empresas, na construção e exploração dos terminais urbanos, presta-se ao financiamento privado, pois o investidor poderia recuperar o valor investido através da cobrança das tarifas de utilização dos terminais.
A Companhia Operadora de Terminais de Integração S/A (Cotisa) venceu a «licitação realizada pela Prefeitura para implantação e gestão operacional dos terminais (…) por um período de 20 anos». (BNDES, 2001). Esta empresa, segundo dados divulgados pelo BNDES, investiu R$15,1 milhões no projeto, dos quais R$8,6 foram oriundos de empréstimo deste banco. A Cotisa é «constituída pela sociedade entre diversas operadoras de transporte coletivo da região (Biguaçu Transportes Coletivos Ltda., Canasvieiras Transportes Ltda., Transporte Coletivo Estrela Ltda., Ribeironense Transportes Coletivos Ltda. e Transol Transporte Coletivo Ltda.), cada uma delas com 17,6% do capital social, totalizando 88%. (BNDES, 2001).
Há outros dados que poderiam ser citados, mas estas breves informações, que podem ser encontradas nos sites do BNDES e da Prefeitura, já demonstram o caráter o tal «sistema integrado», que muitos na cidade há muito vem chamando de «desintegrado». Também há de se colocar em dúvida os próprios dados divulgados (que já causam algum escândalo). O que se percebe claramente é que tudo gira em torno a um pequeno grupo, que controla as empresas de transporte e a Cotisa, «gerente» do SIT, que por sua vez tem vínculos com as oligarquias da cidade, o que até nos serve para entender a razão de prefeita aparecer na imprensa como defensora intransigente dos interesses das empresas, bem mais até que o Setuf, o sindicato das empresas. Muito mais além disso, fica demonstrado uma grande voracidade para obter lucros e mais lucros, cobrindo as «despesas» que tiveram e onerando a população da cidade com altas tarifas.
É neste marco, por si só já bastante complexo, que irá surgir mais um aumento das tarifas. Quando da implantação do SIT, veio um primeiro aumento das passagens, que acabou, depois de intervenção do Ministério Público, ficando em 15% (a prefeitura queria um reajuste de 24,5%). Agora, se fez novo reajuste, que vai, nas diferentes regiões, de 10% e 22%, com média de 15,6%, no mesmo momento em que discutia aumentos absurdos para salário de prefeito e vereadores. Um dado interessante, divulgado pelas empresas, é o de que diminuiu o número de pessoas que utilizam o transporte coletivo, fazendo-se necessário aumentar as tarifas para manter o lucro. Não se sabe a veracidade dessa informação, afinal os dados são as empresas que divulgam, mas ainda que seja verdadeira, sua interpretação pela ótica de quem pega ônibus é justamente o contrário: quanto mais caro, menos pessoas irão pegar ônibus, pois não tem como pagar. Ou alguém já esqueceu do vergonhoso aumento do salário mínimo que o governo «democrático e popular» de Lula deu, tendo como oposição e como apoio um bando de demagogos hipócritas da direita neoliberal deste país?
Paralelo a tudo isso, temos o debate sobre o «passe-livre» para os estudantes, um debate delicado, bastante complexo, que vem mobilizando, há muito tempo, muitos estudantes da cidade, pois a meia passagem, hoje existente, não tem mais como cobrir a ganância dos empresários do transporte. Ainda que os estudantes paguem apenas metade das passagens, fica difícil às famílias conseguirem conciliar o transporte dos filhos para a escola com as demais despesas. Contra o passe-livre se utiliza os mesmos argumentos de agora para defender o aumento das passagens, tentando jogar a população contra esta reivindicação com ameaça de que terá de se cobrar mais impostos, que se terá cortar verbas de outros investimentos etc., ou de que haverá aumento na tarifa. É de uma das organizações que estão na luta pelo passe-livre que vem a resposta: «Hoje, o benefício de 50% aos estudantes é acrescentado na tarifa do resto da população, sendo, portanto, não a «sociedade» em geral quem paga pelo meio-passe, mas os pais dos estudantes, os trabalhadores que andam de ônibus, etc. O estudante paga 50% e o resto da população que já tem que pegar ônibus, paga a outra metade». (Juventude Revolução Independente, 2003)
No mesmo texto, continuam: «Com a Prefeitura assumindo em seu orçamento a responsabilidade de custear o passe-livre, desonera-se do calculo da tarifa o beneficio de 50% aos estudantes, e que é pago pela população que utiliza ônibus. A média na queda dos preços é 10%, que somados aos recursos que vão passar a ficar nas casas de cada família que não tiverem mais que pagar o transporte dos filhos para estudar, passam a gerar um impacto significativo na renda familiar, melhorando minimamente as condições de vida da população mais necessitada, e criando novas possibilidades de formação técnica ou cultural para as classes médias».
E concluem, de forma clara e concreta: «E para aqueles que pensam que o passe-livre representaria uma monstruosidade no orçamento do município, cabe ressaltar que o impacto político que representaria uma lei de passe-livre aos estudantes parece muito para os apenas 2,8% (cerca de 19 milhões de reais num universo de cerca de 600 milhões) que custariam ao orçamento do município, garantir passe-livre à totalidade dos estudantes no trajeto casa-escola-casa». Trata-se de mais uma tentativa, por parte da Prefeitura e das empresas, de enganar população, jogando-a contra quem se mobiliza e luta contra o aumento de passagens e pelo passe-livre.
Portanto, as mobilizações que tiveram início no final de junho não podem ser consideradas mera baderna de meia dúzia de estudantes, e sim uma insurreição popular diante de uma situação econômica e social insustentável, situação esta que leva a maioria da população à revolta. Nesse sentido, não é de se estranhar os ônibus quebrados, as depredações dos terminais e do próprio espaço onde a Cotisa «gerencia» o transporte da região. Nesse sentido, não há de se estranhar que haja por toda a cidade mobilizações espontâneas, ou que haja várias entidades de direitos humanos, estudantis e sindicais, além de associações de bairro, mobilizando contra o aumento das tarifas. Nesse sentido, não há que se estranhar que famílias inteiras estejam se mobilizando. Nesse sentido, não tem como se estranhar que mais de três mil pessoa marchem por sobre a ponte Colombo Salles, numa ato que já faz parte da história da nossa cidade. Nesse sentido, não que se estranhar que na quarta-feira, dia 30 de junho, a população que saía do trabalho e se dirigia ao terminal do centro, uma massa incalculável de pessoas, vendo as atrocidades que a polícia cometia contra os manifestantes, tenha apoiado estes, fosse incentivando sua luta, fosse lutando junto.
Florianópolis está bela como havia muito não se via esta cidade, que sempre passa a imagem de um povo ordeiro e calmo. Todavia, chegou-se a um ponto em que não havia mais como suportar a exploração e a manipulação, o roubo oficial praticado pela Prefeitura e a intolerância de governantes acostumados a usar métodos da ditadura. Pior ainda é o governo do estado, do PMDB, que diz não ser correto bater em manifestantes mas que se deve defender o «bem público». Defender o bom público seria expulsar os empresários do transporte dessa cidade e expropriar seus bens, garantindo um transporte inteiramente (sem «gerentes» privados) público, onde as empresas fossem controlada pelos seus trabalhadores e as deliberações sobre o transporte caberiam a um fórum formado por estudantes, comunidades e trabalhadores. Defender o bem público não é garantir a ordem da Cotisa e da prefeita filha da ditadura que há oito anos governa essa cidade, e sim garantir um aumento real de salário, emprego e condições de vida à população, coisas que não estão na agenda do governador Luis Henrique da Silveira e muito menos de Angela Amin.
A vitória da revolta que agita Florianópolis está próxima. Façamos do dia oito de julho um dia histórico em nossa cidade, fechando simultaneamente todos os terminais da cidade e construindo um grande ato, no final do dia, que reuna milhares de pessoas, mostrando a força que temos quando nos levantamos. Mas nossa luta não pode parar por aí, pois é preciso arrancar ainda o passe-livre estudantil, junto a isso lutando pelo aumento salarial, pelo passe-livre para desempregados, contra o desemprego, a essas lutas somando outras, como a reforma agrária e contra as reformas neoliberais do governo federal. É preciso, exigindo a ruptura do PT com a burguesia e a expulsão dos representantes capitalista e corruptos do governo Lula, caminhar a um movimento político, de classe, independente, dos trabalhadores, partindo das reivindicações mais imediatas. É preciso construir a unidade entre os trabalhadores e os estudantes, construindo organismo de discussão e deliberação, nas escolas, nos locais de trabalho, nas comunidades, que organizem nossas lutas, nossas vitórias.