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Entrevista explosiva a Heloísa Helena

O governo Lula e o PT legitimam a verborragia da patifaria neoliberal

Fuentes: Revista Caros Amigos

Foi uma das mais longas de nossas entrevistas, cinco horas e meia de conversa, nas quais essa alagoana que não tem medo de nada expõe seu lado fera e seu lado carinhoso, deixando sublinhada, mais que qualquer outra coisa, a profunda afeição que devota aos menos favorecidos, quer dizer, à esmagadora maioria da população brasileira. […]

Foi uma das mais longas de nossas entrevistas, cinco horas e meia de conversa, nas quais essa alagoana que não tem medo de nada expõe seu lado fera e seu lado carinhoso, deixando sublinhada, mais que qualquer outra coisa, a profunda afeição que devota aos menos favorecidos, quer dizer, à esmagadora maioria da população brasileira.

Entrevistadores: Marina Amaral, Natalia Viana, Debora Pivotto, Marília Melhado, Antonio Martinelli Jr., Thiago Domenici, Rafic Farah, João de Barros, José Arbex Jr., Wagner Nabuco e Sérgio de Souza.

TRECHO 1

Natalia Viana – Senadora, vou deixar o gravador mais próximo, que a senhora está com problemas na voz…

Heloísa Helena – Para alegria de alguns.

Marina Amaral – Você nasceu em Alagoas?

Sim, nasci numa cidadezinha chamada Pão de Açúcar, na beira do rio São Francisco, no sertão de Alagoas. O nome originário da cidade era mais bonito, era Jaciobá, que quer dizer espelho da lua, por causa do rio. Depois morei em várias cidadezinhas do interior, sempre no sertão de Alagoas, morei um tempo no povoadinho onde minha mãe nasceu, chamado Poço Branco, e depois passei uma parte muito importante da infância e adolescência em Palmeira dos Índios. Digo que sou muito sortuda e abençoada porque as primeiras coisas que li na vida foram a história de luta e libertação do povo de Deus – porque tive uma excelente experiência na Igreja, não convivi com a Igreja cínica e carcomida a serviço da elite, convivi com a Igreja que protegia os pobres – e as coisas escritas por um velho comunista: Graciliano Ramos.

Marina Amaral – E era uma família rural?

Minha mãe é filha de trabalhadores rurais. Meu pai era servidor público, mas morreu quando eu tinha três meses de idade. E, como minha mãe, que havia ficado órfã com 14 anos, criou os irmãos no cabo da enxada, era natural que nós também, mesmo quando já morávamos em Palmeira, nos meses de férias, íamos para a roça.

José Arbex Jr. – São quantos irmãos?

Somos dois hoje. Meu irmão mais velho foi assassinado quando eu era pivete.

João de Barros – Como foi isso?

Como todo filho de pobre quando é assassinado, ninguém acha quem matou. Assassinado com um tiro de 12 no peito…

José Arbex Jr. – Sua mãe é viva?

É viva, não muda nada. Lá em casa eu sou a mais calma… Pelo menos em casa, só brigo no trabalho, e com quem não presta.

Sérgio de Souza – A política partidária aparece em que época?

Meu irmão já militava no PC do B. Portanto, eu já tinha alguma familiaridade com política.

Sérgio de Souza – Com que idade?

Com 15 anos. Só fui para Maceió porque ganhei uma bolsa. Fui fazer o último ano e o vestibular. Mas já lia muitas coisas, meu irmão militava no PC do B, ainda na clandestinidade, conheci toda a chamada literatura de esquerda via ele também, e comecei a fazer política como todo mundo: no movimento da Igreja, no movimento estudantil, sindical, depois fui ser professora da universidade. Quer dizer, já militei no movimento sindical quando fui funcionária da Previdência, no INAMPS.

Sérgio de Souza – O PT foi o seu primeiro partido?

Foi, mas eu já trabalhava com o movimento rural. Sempre digo que a primeira surra que levei fora de casa foi militando, foi defendendo trabalhador rural e enfrentando os malditos usineiros.

José Arbex Jr. – Você entrou para o PT antes de entrar para a DS (Democracia Socialista, grupo ligado à IV Internacional)?

Na DS primeiro, depois no PT.

José Arbex Jr. – E o que a levou ao trotskismo?

Uma concepção de esquerda com a qual sempre me identifiquei mais.

Marina Amaral – Em que ano você entrou na universidade?

Em 1980.

TRECHO 2

Sérgio de Souza- Você começou falando que estava afônica, para a alegria de alguns. Quem seriam?

A vadiagem do capital.

Sérgio de Souza – Mas daí é muito amplo…

Não é amplo, não, isso é pouca gente.

Sérgio de Souza – Pensei no seu meio, no Senado.

É, também no Senado, se bem que hoje nem sei mais quem no Senado ficaria alegre. Como «cínico memorial das contradições», aquilo deixa qualquer um estarrecido. Imagina como me sentia em Alagoas ao ver toda a tropa de choque «collorida», imagina o que passei no Estado, vendo a campanha do Collor versus Lula, e agora ver toda a tropa de choque «collorida» ser tratada como amor primeiro, quase que de infância, pelo governo Lula. Ou ver a tropa de choque do governo Fernando Henrique sendo hoje tropa de choque do governo Lula.

João de Barros – Mas, na contramão do que a senhora está falando, também senti um pouco isso ao ver uma foto sua no Senado, comemorando os 275 reais do salário mínimo ao lado do ACM.

Eu não estava ao lado do senador Magalhães, estava dividindo o mesmo espaço geográfico que ele. Tenho um amigo anarquista, que amo muito, e sei que ele também me ama muito. Ele recortou a foto, mandou pra mim e disse bem assim: «Meu amor, continuo te amando. Mesmo que você venha com essas ridículas considerações de que o mandato parlamentar é a trincheira de resistência da nossa classe. Como sempre, continuo pensando que você não deve, ou melhor, não merece estar no mesmo espaço geográfico dessas pessoas». Então, quando as pessoas querem interpretar, interpretam da forma que querem. Eu estava defendendo o que sempre defendi e, em vez de as pessoas perguntarem onde estavam os petistas que não estavam a comemorar, diziam que eu estava ao lado dos meus inimigos de classe e de meus adversários históricos. Eu não estava ao lado deles. Eles é que estavam, disputando o direito autoral do projeto Lula. É só isso que eles fazem, porque a obra que está sendo viabilizada é a obra deles. Ficam a esfregar o dedo nas feridas das contradições do PT porque é o que lhes resta fazer. Aliás, o que fizemos muito também. Passamos, eu quatro anos, como líder do PT no Senado e líder da oposição ao governo Fernando Henrique outros oito anos, a todos os dias verbalizar que o Fernando Henrique tinha dito: «Esqueçam o que escrevi». Então, agora eles ficam a falar que o PT está dizendo: «Esqueçam o que falei, o que fui e o que escrevi». E, em um ou outro momento, em função do oportunismo eleitoral, eles se associam a um determinado projeto, como foi para aprovar as duas farsas de reforma, a da Previdência e a Tributária, que nem foram reformas. Aí, eles contaram com quem? Com o PFL carlista e com o PSDB. Do mesmo jeito, na próxima semana quase será unânime – só não será porque haverá dois ou três votos contrários – a aprovação da Lei de Falências e da PPP, né!?

TRECHO 3

José Arbex Jr. – O Lula é um traidor ou é equivocado?

Sei que muita gente acha superdoloroso quando a gente fala, mas a palavra é traição porque não compartilho a concepção preconceituosa, nojentinha, de parte da elite nacional, que dizia «oh, é um incompetente, um despreparado…», não. Não tem nada a ver. É uma figura altamente qualificada, preparada, competente, só que mudou de lado. Se eu disser que é equivocado, incompetente, despreparado, estarei compartilhando com algo que eu brigava em todos os lugares, era quase uma repetição eterna, porque falava do curso, daquelas porcarias de diploma, não sei que… Com todo o respeito aos que lutam por um diploma, que estão lá tentando fazer alguma coisa nas universidades brasileiras. Vocês acham que é fácil pra um militante socialista agüentar o governo Lula e o PT legitimarem a verborragia da patifaria neoliberal? Superávit, responsabilidade fiscal, ajuste fiscal, austeridade, governabilidade!… Não é uma coisa qualquer, passamos décadas dizendo que aquilo não era verdade; e hoje eles legitimam essa verborragia!

Sérgio de Souza – Qual seria, então, a alternativa?

Romper com o Fundo Monetário Internacional.

Sérgio de Souza – Isso é possível?

Ah, não tenho dúvida de que é. Aliás, no dia em que alguém me mostrar um único país do planeta Terra, unzinho, que seguiu o receituário dos parasitas, das instituições de financiamento multilaterais, e, mesmo sob a égide da globalização capitalista, conseguiu superar a dicotomia desenvolvimento econômico-inclusão social, deixo de ser de esquerda. Não tem.

Marina Amaral – Mas o PT sempre disse que não ia romper com o FMI.

Meu amor, não estou a exigir do PT isso, não. Não estou a exigir mais nada, agora, porque graças a Deus estou em outra; estou agora na turma do Socialismo e Liberdade. Aliás, como dizia dona Helena, minha mãe, na miséria de nossa infância: Deus escreve certo por linhas tortas. Porque nada melhor pra mim do que ver ao longe passar o bloco dos desmascarados sem ter de pular com eles.

João de Barros – Heloísa paz e amor, é?

Paz e amor pra classe trabalhadora. Combate e guerra permanente pro capital. Pra classe trabalhadora, você não sabe como sou boazinha. Pense numa mulher boazinha, um anjo. Agora, pra turma de lá, não, porque tenho lado. Tenho lado, é por isso que eu morreria. Já imaginou se eu estivesse agora tendo de defender essas coisas todas? Eu morria.

TRECHO 4

João de Barros – Para simplificar, você está pensando em fazer o quê?

O que estamos fazendo. Andando, conversando com o povo primeiro, porque até os movimentos sociais não estão necessariamente articulados com o povo. Qual é o movimento social que está? Fora os que estão fazendo ocupação de terra, qual? O movimento comunitário sempre foi delegado à direita fisiológica, lembra? Então nós também, mesmo quem está dizendo que está fazendo a ofensiva junto dos movimentos sociais, não estamos conversando com o povo. Porque a gente também tem a mania de dizer que está conversando com o povo e não conversa. É o cão, né? Nós, militantes de esquerda, temos a mania de dizer que representamos o povo, conversamos com o povo, e não conversamos, então também tem que dizer isso. Sou apaixonada pelo povo brasileiro, não é discurso, é porque o povo brasileiro é muito generoso mesmo, impressionante! Porque a pessoa gosta de mim, sendo alguém da periferia, sem saber necessariamente o que é que estou falando de FMI, de não sei o quê? Estou dizendo que o povo brasileiro é muito generoso porque ando neste país, visitei o país todo, e sou vista pela elite como uma pessoa rancorosa, radical, intolerante, uma onça raivosa, uma mulher primitiva… mas não dedico uma única gotinha do meu suor para convencer a elite de que não sou isso.
E, por mais que tenha pessoas das universidades ou sofisticadas no saguão do aeroporto, muitas que, mesmo não compartilhando com nossa visão de mundo, acham que temos o direito de defender aquilo em que acreditamos, porque realmente está muito enraizado na alma do povo brasileiro o sentido democrático, é impressionante como as pessoas simples são o maior estímulo da gente, da nossa radicalidade. Claro que temos pessoas maravilhosas como Chico Oliveira, Paulo Arantes, Leda Paulani, Carlos Nelson Coutinho, Milton Temer, a Rosa e o João Machado da PUC, Ricardo Antunes, e vários outros desses chamados intelectuais que, aliás, sempre riem deles mesmos quando, nos eventos do novo partido, são classificados como intelectuais. Mas as mais belas lições de generosidade e de apoio são do catador de lixo, do ambulante, do motorista de ônibus que está lá passando e você está dirigindo e ele buzina: «E aí, e o novo partido?» Alguns acham que a nossa visão de mundo é uma viagem interplanetária, outros acham que é impossível aquilo que a gente defende, e outros nem sabem muito bem o que estamos a defender, mas eles querem que algo mude. Então, isso é o que nos movimenta. Então, se tem gente que quer militar só nos movimentos sociais, espero que não vá votar agora nessa eleição, porque aí vai votar em quem? Vai fazer o jogo de quem?

Wagner Nabuco – Muitas vezes vai votar no PFL.

A institucionalidade, realmente… eu, pelo menos, só vivia vomitando naquela época em que as contradições eram tantas, que eu corria para o banheiro para vomitar no momento das votações do Senado.

TRECHO 5

Sérgio de Souza – Pra encerrar, qual seria o seu conselheiro maior?

Muitas pessoas me inspiraram a vida toda, como as chamadas personalidades da esquerda mundial, Rosa Luxemburgo, Trótski, Lênin, o belo humanismo revolucionário do Che Guevara, camarada Jesus, Graciliano. E o senador Lauro Campos, que era muito amigo, muito especial na minha vida. Convivo muito com as pessoas, pra mim é oxigênio conviver com as pessoas, digo as do chamado mundo real. Sempre tive as mais belas lições de generosidade, acho que as mais belas lições de honestidade tive na minha própria casa.
Lembro de minha mãe costurando, e colando umas continhas azuis nos vestidos das madames. Eu ficava apaixonada por aquelas continhas azuis, sonhando em me apropriar das que sobravam, pra colocar nos vestidinhos das minhas bonecas de pano. E minha mãe era tão rigorosa, que colocava as contas que sobravam nos saquinhos para devolver à mulher que contratava o vestido. Então, sempre tive lições preciosas, tem uma que nunca esqueço, de um menino de rua. Eu vinha de uma dessas viagens do interior e encontrei uma briga de meninos de rua, desci pra apartar a briga e me meter na confusão, faca e não sei o que. Eu conhecia muitos deles, e me meti pra apartar a briga. Aí, depois, a gente levou um deles para o pronto-socorro e ficamos lá conversando. E um deles, supersujo, que conheço porque sei qual é a favela onde ele mora. Tão difícil pra essas crianças voltarem pra casa, né? Porque está lá o amante ou o pai alcoolizado, a lama, fica disputando o que comer no lixão com urubus, e ratos percorrendo a sua própria cama. E ele estava cheio de cola e muito sujo e disse: «Heloísa, tu mora perto do presidente da República?» Fiquei com vontade de falar mal do Fernando Henrique na hora, mas respondi: «Mais ou menos perto». Aí, ele disse: «Ah, mas você tem de falar com o presidente da República, pra ele mandar comida pros pobres da seca. Porque eu vi lá na loja da esquina» – ele apontou assim -, «porque eu vi ali na Casa Guido, que tem um menininho morto cheio de mosca na chupeta, Heloísa. E ele não tinha nada pra comer em casa. Então, você tem de falar com o presidente, que é pra mandar sopa e comida lá pro povo do sertão que está passando fome». Eu fiquei assim, digo, a pessoa que não tem nada, que não tem casa, não tem expectativa de vida, estava brigando no meio da rua, se esfaqueando uns aos outros pra ter cola, e ele nem estava pensando nele. Nada, não estava pedindo casa pra ele. Nem pedindo lona pra proteger o barraco da mãe dele. Estava pedindo porque uma cena o marcou profundamente, um menininho morto com a chupeta cheia de mosca.
Então, assim, as pessoas sempre me ensinaram muito. E tive também muita sorte. Porque a Igreja com a qual convivi não era uma igreja reacionária, que privilegia os filhos da elite. Os padres da minha infância os reencontro com muita alegria pelo interior de Alagoas, porque estão lá espalhados. E as freiras holandesas da escola em que eu estudava em Alagoas sempre foram muito especiais. Então, sempre encontrei muita gente generosa, substituem na minha alma e no meu coração qualquer outra convivência que eu tenha tido de ter com o que existe de pior na espécie humana.

Sérgio de Souza – Quer dizer alguma coisa para finalizar?

Só reafirmar: é melhor o coração partido do que a alma vendida.

6-7-04
http://carosamigos.terra.com.br/
Correspondencia de Prensa