Voltar as costas à importância de Getúlio Vargas na história moderna do Brasil, ou desconhecer os avanços obtidos ao longo de seus governos, seria ignorar a realidade, agredir os fatos. A legislação trabalhista, a criação da previdência social, via de regra conquistas apontadas como fundamentais do governo Vargas, ignora que os trabalhadores rurais permaneceram à […]
Voltar as costas à importância de Getúlio Vargas na história moderna do Brasil, ou desconhecer os avanços obtidos ao longo de seus governos, seria ignorar a realidade, agredir os fatos.
A legislação trabalhista, a criação da previdência social, via de regra conquistas apontadas como fundamentais do governo Vargas, ignora que os trabalhadores rurais permaneceram à margem do processo, submetidos ao selvagem esquema do latifúndio, um dos principais apoiadores de Vargas.
Deixar de lado os cárceres cheios, 4099 pessoas foram julgadas pelo Tribunal de Segurança e algumas condenadas a penas de até 60 anos de prisão, também. Ou ignorar a ação de esbirros nazistas como Felinto Muller (mais tarde viria a ser o líder do governo Castello Branco, já na ditadura militar, no Senado), seria como aceitar procedimentos de arbítrio, tortura válidos, desde que praticados por um lado.
Getúlio governou de forma pendular, ao sabor dos interesses das elites, pai dos pobres, mãe dos ricos, não sendo necessariamente um político corrupto, pelo contrário. Ao seu redor sim, um mar de lama, para usar uma expressão típica da UDN. Flertou com o fascismo, aproximou-se dos EUA e só enviou a lei que estabelecia o monopólio estatal do petróleo ao Congresso, depois de consultar empresas norte-americanas, como a Shell, sobre se tinha interesse em investir no Brasil.
Àquela época não tinha. O petróleo brasileiro estava em alto mar e em regiões profundas, não havia tecnologia para retirá-lo. E, curiosamente, o projeto de Getúlio foi aprovado de forma bem mais radical que o texto do Catete, por conta da UDN. Na oposição, querendo pegar carona na campanha «O petróleo é nosso», ampliou o monopólio.
Tancredo Neves terá sido o último getulista histórico a alcançar a presidência da República. Brizola, o último sobrevivente de uma era. Nenhum dos dois, no entanto, conseguiu governar o Brasil. Tancredo, eleito, morreu antes de tomar posse.
A mancha decorrente da entrega de Olga Benário ao ditador alemão Adolf Hitler não pode também ser apagada. Por mais que alguns tentem argumentar que Olga era espiã. Estava grávida de um brasileiro que, por acaso, era um dos principais adversários da ditadura e tinha grande prestígio popular. No caso, Luís Carlos Prestes.
Com Sarney uma geração de udenistas medíocres chega ao poder e começa o desmonte da era Vargas. Mas só do legado positivo. O resto continua como dantes, naquilo que Saramago chama de «farsa democrática».
OS TEMPOS NEOLIBERAIS
O primeiro a usar a expressão «fim da era Vargas» foi Fernando Henrique Cardoso. Integra a versão contemporânea da UDN, o PSDB. O primeiro a acenar com as mudanças neoliberais foi Collor de Mello. Filho de um senador udenista, Arnon de Mello. Nesse meio tempo, Itamar Franco que, até hoje, acredita que foi de fato presidente da República. De direito sim, de fato não.
Oriundo do ex-PTB, o PTB de Vargas, foi no seu governo que Volta Redonda foi privatizada.
Getúlio acreditava num Estado forte, regulando, intervindo, decidindo. O neoliberalismo desmontou esse conceito e adotou o do Estado mínimo. É aquele em que uma agência que cuida de telecomunicações pode mais que o presidente. O que vale dizer, as companhias que controlam essas estranhas anomalias da democracia ocidental. Estranhas e podres.
A legislação trabalhista foi e está sendo sepultada gradativamente. O próprio governo Lula, supostamente de esquerda, trama o fim do décimo terceiro salário, conquista do governo Goulart, ao tempo de Tancredo primeiro-ministro.
Uma das primeiras providências da ditadura foi tomada por Roberto Campos, ministro do Planejamento do governo Castello Branco: o fim da estabilidade após 10 anos de trabalho e o fim das indenizações por demissões imotivadas. Transformaram o direito do trabalhador num FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço).
Como a CPMF (Contribuição por Movimentação Financeira), criada para gerar recursos para a saúde, o FGTS, criado para amparar o trabalhador, entram nas receitas públicas como forma de quitar a monumental dívida externa contraída pela ditadura militar.
Setores como o de energia elétrica (o último grande investimento foi Itaipu, inaugurado pela ditadura militar, mas obra que Jango concebeu através do Plano Trienal de Celso Furtado), o de telefonia, foram privatizados, entregues ao capital estrangeiro quase que sem reservas.
Companhias criadas por Getúlio, a Vale do Rio Doce por exemplo, entregues de bandeja a grupos estrangeiros.
Um novo Brasil emergiu do período que se seguiu a Sarney.
Collor abriu os portos e quase quebra a indústria nacional.
FHC, perverso, uma espécie de governador geral de uma província dos Estados Unidos, sem nenhum escrúpulo ou princípio ético, que não o da amoralidade, durante oito anos, armou e teceu uma rede que faz do Brasil um país imobilizado diante do poder do capitalismo.
Leonel Brizola costumava dizer que a raiz dos problemas brasileiros estava na sangria externa. Foi profético quando disse que planos econômicos tinham apenas o objetivo de adoçar a boca do brasileiro, enquanto o principal ia para os principais acionistas do novo Estado. O Estado privatizado.
O latifúndio continua a ser um dos mais importantes aliados do governo, mesmo o governo Lula. É latifundiário, de extrema-direita, ligado a grupos ultra-radicais, o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues. Foi um acordo com a chamada bancada rural na Câmara, que garantiu o salário mínimo, criado por Vargas, em patamares ridículos.
Os próprios herdeiros de getulistas notáveis, no caso do governador de Minas, Aécio Neves, neto de Tancredo, renegaram os princípios defendidos pelos avós. Tancredo tinha ojeriza a FHC e o considerava um «péssimo caráter, puro oportunismo», disse isso mais de uma, disse-o n vezes.
O legado de Getúlio permanece em partidos como o PDT, fundado por Leonel Brizola. O PTB hoje já abrigou figuras como Bonifácio Andrada, nascido e criado na banda de música do lacerdismo udenista. Ou Roberto Jéferson, da chamada tropa de choque de Collor, uma quadrilha que governou o Brasil por um ano e meio.
Lula já disse que detesta rótulos, que não é de esquerda. Assumiu todos os compromissos de FHC com o FMI. Propôs a reforma da previdência nos moldes daquela instituição, atingindo aposentados e pensionistas em direito fundamental. Trabalha a reforma universitária que privatiza o ensino de terceiro grau no Brasil.
Tenta assumir a postura de pai dos pobres, não consegue fugir do fato de estar sendo a mãe dos ricos, é só olhar os lucros dos bancos nos seus quase dois anos de governo.
Não foge ao esquema neoliberal apesar de querer, como Getúlio, dar uma no cravo, outra na ferradura, mas para inglês ver. Dá sempre para o capital.
Não tem a estatura e nem os tempos são os de 1930, ou os de 1950.
A luta de classes, no entanto, continua sendo uma realidade.
«O ENIGMA DA ESQUERDA»
O professor Francisco Oliveira, Chico Oliveira, um dos mais importantes intelectuais contemporâneos em nosso País, no Fórum Social Brasileiro, em novembro de 2003, em Belo Horizonte, disse o seguinte: «não vou discutir o governo Lula, pois não discuto caráter. Quero começar a discutir o enigma da esquerda, que é o nosso desafio na realidade de hoje».
O Brasil não foi diferente dos demais países latino-americanos no século XX. Só é maior, e como disse Nixon, «para onde se inclinar o Brasil se inclina a América Latina».
As lutas e rebeliões, a revolução de 30, foram feitas a partir das elites. A exceção de 1935, onde setores das forças armadas e organizações civis tentaram uma revolução comunista.
O Brasil foi pensado numa estranha e absurda fixação no modelo norte-americano. Tanto por Getúlio, no seu jeito de uma lá, outra cá. Pela ditadura militar, mesmo nos seus instantes de anti-americanismo e, definitivamente transformado em entreposto dos EUA a partir de Collor, situação levada a extremo por FHC.
A chamada luta institucional se esgotou. É um jogo de cartas marcadas.
O enigma terá que ser decifrado a partir do movimento popular.
Por algum tempo se tentou estabelecer correlação entre Vargas e outros ditadores da América Latina. Havia uma diferença fundamental para a percepção de certas atitudes do caudilho. Os ditadores, como Perón, Rojas Pinilla, Perez Jimenez, Batista, Somoza, Stroessner, eram todos generais (no caso de Batista se auto promoveu de sargento a general). Getúlio era civil, mas vinha do Rio Grande, palco de grandes movimentos revolucionários ao longo da história do Brasil.
Lacerda chegou a tentar impingir a Jango ligações com Perón e, no seu estilo de vale tudo, apresentou uma falsa carta, a Carta Brandi, querendo estabelecer como reais fatos urdidos em sua mente doentia.
Quando da ditadura militar, pouco antes da edição do AI-5, Lacerda e Juscelino se reconciliaram para lutar pela «democracia». Estavam privados dos seus direitos políticos. Foram a Jango, numa costura efetuada por políticos próximos de Juscelino e do herdeiro de Vargas.
Lacerda, talvez, tenha recebido ali a maior lição de grandeza de um homem público em toda a sua vida. Durante a viagem para Montevidéu, junto com JK, o líder udenista manifestou várias vezes sua preocupação com o encontro, temeroso da reação de Jango, de quem fora o crítico mais feroz. Como de Getúlio. Como de JK. Como de Jânio, depois de ter sido seu principal aliado.
Em Montevidéu, ao entrar na casa do ex-presidente, manifestou intenção de se desculpar e ouviu o seguinte: «governador: eu não lhe tenho ódio. Não sou homem de ódios. Afinal o senhor sempre me combateu pela frente. Se ódio tivesse seria de Magalhães Pinto, até a última hora se fazendo passar por meu aliado. E acima de tudo e independente de tudo, estamos aqui pelo Brasil e não por interesses pessoais. Não cabem mágoas».
Getúlio foi isso aí. Tanto em termos de pessoa, como de presidente, como seus momentos de governo, seus feitos e o getulismo sem Getúlio, após sua morte.
Não há saldo positivo e nem negativo no getulismo. Foram instantes da história do Brasil, situações de tempo e espaço históricos, mas todos conduzidos pelas elites.