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Carta do Araguaia, resultante do II Festival Ecológico Cultural das Águas de Mato Grosso “Águas do Araguaia”.

Ecos das águas do Araguaia

Fuentes: Adital

  «Nossas vidas são os rios que vão ao mar…  Dizia o velho a cantar!  Nossa vida é o Araguaia!  Canoa e lua  De céu e praia…  O povo  Na terra da luta  No canto do novo…  Na vida, no risco, no pranto…  Nosso Araguaia é nosso canto!»  (Pedro Casaldáliga – Extraído do encarte do CD-Canto Araguaia)  Aproximadamente mil e quinhentos homens e mulheres de nove […]

  «Nossas vidas são os rios que vão ao mar…
 
 Dizia o velho a cantar!
 
 Nossa vida é o Araguaia!
 
 Canoa e lua
 
 De céu e praia…
 
 O povo
 
 Na terra da luta
 
 No canto do novo…
 
 Na vida, no risco, no pranto…
 
 Nosso Araguaia é nosso canto!»
 
 (Pedro Casaldáliga – Extraído do encarte do CD-Canto Araguaia)
 
 Aproximadamente mil e quinhentos homens e mulheres de nove estados brasileiros (MT, TO, PA, PE, GO, BA, RJ, SP, PR), de diferentes povos indígenas, entre eles, os Inã-Karajá, os Tapirapé e os Xavantes; diversas entidades governamentais e não governamentais: GESTAR/ARAGUAIA, SDS/Secretaria de Desenvolvimento Sustentável/MMA, Centro Etno-Agroecológico do Médio Araguaia – CEAMA, ISA-Instituto Socioambiental, WWF-Brasil, SINTEP/MT, FEMA, IBAMA, INCRA, FORMAD-Mato Grosso Sustentável e Democrático, FLEC-GT-Meio Ambiente, AGB-Seção Médio Araguaia/MT e São Paulo/SP; Educadores e Pesquisadores de diversas Universidades brasileiras, entre elas, USP, UNICAMP, UFMT, UNEMAT, UFPE, UFF, UNESP, UFRJ, UNIMEP-UNIARA; representação de diversos setores da sociedade como o MST, CPT, Prelazia de São Félix do Araguaia/MT (representada pelo Bispo Dom Pedro Casaldáliga e pela ANSA), APRUMAV e Retireiros do Araguaia, Associação Indígena WARÃ, Olhar Etnográfico, LASERE/dep. de Geografia/USP, FUNAI, Petrobrás Ambiental, OPAN-IVE, CIMI, dentre outros, reuniram-se entre os dias 19 e 21 de agosto de 2004, em Luciara/MT, no II FESTIVAL ECOLÓGICO CULTURAL DAS ÁGUAS DE MATO GROSSO – ÁGUAS DO ARAGUAIA, que teve como objetivo fortalecer e desenvolver a consciência coletiva de cuidar do meio ambiente numa base cultural e em especial das águas. Nós, participantes do Festival das águas do Araguaia, estamos partilhando, através deste manifesto, algumas discussões e apontamentos registrados no decorrer do evento. Após três dias de intensos debates que envolveram as dimensões científica, filosófica, cultural e espiritual, necessárias para dar conta da complexidade das águas, vimos a público declarar que:
 
 1. A humanidade está, hoje, ameaçada pela depredação generalizada dos recursos naturais, inclusive das águas, pelo uso irresponsável desse recurso causado, sobretudo, por um modelo de desenvolvimento que tem seus horizontes limitados por sua lógica de curto prazo. O horizonte do lucro fundado numa lógica competitiva e não solidária tem sido o maior obstáculo para a sustentabilidade do planeta;
 
 2. A crise real da água da qual muitos hoje parecem se dar conta, deve ser vista de modo contextualizado, uma vez que as dificuldades na obtenção de água para a vida vêm sendo sentida há décadas por todos os setores da população, principalmente por aqueles menos favorecidos sem que esse fato tenha sido motivo de interesse seja dos meios de comunicação de massa, seja das instituições públicas nacionais ou internacionais. Temos o dever de chamar a atenção de todos e todas que há uma campanha orquestrada mundialmente no sentido de construir uma aceitação de políticas que visam, sobretudo, privatizar as águas de todo o mundo. De nossa parte, declaramos que há uma crise que envolve esse precioso elemento da natureza, mas que essa crise não autoriza se conclua que, para resolvê-la, haverá de se privatizar as águas. Declaramos, enfaticamente, com base em pesquisas científicas e de reflexões de ordem filosófica que a água não é simplesmente recurso hídrico, mas que é parte da vida e, como tal, não pode ser alienada e separada da totalidade da natureza. Não há vida sem água – a água não está só no estado líquido, gasoso e sólido, mas, também, em estado vivo nas plantas, nos bichos, na comida que comemos, nos objetos industrializados que utilizamos em nosso dia-a-dia. Em cada pessoa humana a água se «infiltra» na vida, por todos os lados. A água deve ser vista, portanto, como um Direito Humano Universal e, por isso, não podemos aceitar que se torne uma mercadoria. Esclareça-se para não deixar nenhuma dúvida, que sendo a água um Direito Humano e Universal é obrigação do Estado garantir que todos tenham acesso a ela;
 
 3. O Estado de Mato Grosso tem uma responsabilidade especial perante a humanidade pelo patrimônio das águas que o território que nos coube habitar detém. As duas maiores áreas continentais alagadas do planeta – o Pantanal e o Araguaia – dependem da dinâmica socioambiental direta de nosso Estado. Registremos, ainda, que na parte amazônica de nosso estado, em cada hectare há, em média, 460 toneladas de biomassa e que 70% dessa biomassa é Água. Assim, estamos diante de um verdadeiro oceano verde cuja significação é enorme para a dinâmica climática não só de nosso país, como do planeta;
 
 4. A maior ameaça que paira sobre o imenso patrimônio de água deste pequeno pedaço do planeta que nos cabe cuidar é o modelo de desenvolvimento econômico com base no grande latifúndio produtivo de monocultura, de desigualdade social e de violência. Em 2003, nosso estado teve o maior índice de violência, tanto em relação ao número de assassinatos, como de famílias despejadas, segundo dados da CPT. Essas grandes monoculturas, além de colocar em risco a enorme diversidade biológica de paisagens que, cada uma delas, já em si detém uma enorme biodiversidade – o cerrado, a floresta ombrófila, o pantanal e as planícies do Araguaia, estão entre as unidades de maior diversidade biológica do mundo – tem feito do nosso Estado, também, campeão nacional de queimadas e desmatamentos e, ainda, provocado grande desequilíbrio no sistema Chapada-Vale (notavelmente consagrado na expressão Grande Sertão, Veredas – de Guimarães Rosa) na medida que nossas chapadas, que são áreas de recarga hídrica, têm sido objeto de verdadeiro saque de suas águas, elas que ali se infiltram e vão alimentar os fundos dos Vales, as Veredas. Uma tonelada de soja, por exemplo, exige para ser produzida um milhão de litros de água, segundo a Agência Nacional de Águas; cerca de 70% da água captada em profundidade para irrigação se perde por evaporação sem sequer ser útil. Os pivôs centrais que, cada vez mais, ocupam nossas paisagens, estão se constituindo em verdadeiros «pivôs da discórdia». Tanto os cientistas aqui presentes, como diversas lideranças indígenas, de ribeirinhos, camponesas e retireiros acusam o mesmo problema: há uma infinidade de rios e lagos secando; outros, se tornando intermitentes; os regimes de cheia e vazantes dos nossos rios e lagos estão sendo completamente alterados, com variações cada vez mais extremadas. Os volumes de sedimentos arenosos vêm assoreando os rios, agravando seus ritmos e fluxos;
 
 5. Esse modelo de desenvolvimento, pelos volumes de matéria e energia que precisa fazer circular para exportar, ainda tem aumentado as ameaças sobre a natureza e nossas águas, em particular, pela necessidade de vias de circulação e construção de barragens. Nossos rios têm sido criminosamente barrados, ignorando-se a complexidade que envolve a vida nas águas, inclusive com impacto direto sobre os peixes que dependem da piracema para ganhar força e se reproduzir e, com isso, são milhares de famílias de ribeirinhos, retireiros e indígenas que também não encontram a vida necessária para reproduzir suas vidas. A ameaça das hidrovias que ainda paira sobre nossas vidas, sobre o Pantanal, sobre o Araguaia, Tocantins e rio das Mortes, vem se juntar a ameaça da BR-163 que, de Cuiabá, corta a floresta amazônica em direção a Santarém. Sabendo-se que, nos últimos dois anos, as taxas de desmatamento voltaram a registrar os alarmantes índices históricos dos piores de nossa história recente e, sabendo-se que é a mesma lógica do curto prazo e de uma produção que não se destina aos locais ou para os da região e, sim para a exportação, como é desde 1532 quando começou o «agronegócio colonial da cana-de-açúcar», conclamamos, não só a cada pessoa de Mato Grosso, mas a todos os brasileiros e a comunidade internacional, a se mobilizar para impedir que se perpetre mais essa morte anunciada contra a floresta amazônica e seus povos.
 
 O II FESTIVAL ECOLÓGICO CULTURAL DAS ÁGUAS DE MATO GROSSO – ÁGUAS DO ARAGUAIA reconhece que todo e qualquer modelo de desenvolvimento deve partir do enorme acervo de conhecimento que as diferentes matrizes de racionalidade existentes em nosso estado construíram ao longo de sua existência nestas plagas. Dispomos, aqui em Mato Grosso, de um amplo espectro de culturas que se desenvolveram e se desenvolvem com a natureza e que detém um enorme conhecimento, não só indispensável, como insubstituível. Dispomos também de conhecimento científico convencional produzido nesta região pela Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) em parceria com outras universidades cujos professores e pesquisadores se dedicam junto a população local. Daí todo o nosso apoio a qualquer iniciativa que vise consagrar os direitos dos camponeses, retireiros e indígenas a terem suas terras de tal modo demarcadas para que possam continuar e aperfeiçoar suas matrizes culturais. Esse conhecimento é patrimônio da humanidade e fundamental para proteger as águas, as terras, as plantas e os bichos.
 
 Por fim, conclamamos a todos aqueles e aquelas que lutam por um mundo de solidariedade, de paz e eqüidade social a se juntarem a nós e lutar para tornar as «várzeas do Araguaia» (segunda maior área alagada do planeta – com mais de dois milhões de hectares) um Patrimônio Nacional, tal como já o são o nosso Pantanal, a Mata Atlântica, a Amazônia.  Assim estaremos à altura de tudo aquilo que seus povos e suas paisagens nos dão e que ainda nos podem dar.
 
 Longa vida às nossas águas!
 
 Que os Aruanãs e todos os espíritos das águas nos protejam!
 
 Que, juntos, nossos povos encontrem a força necessária para a defesa da vida!
 
 Amém, Axé, Awyre, Aleluia!!
 
 
 * Pró-Reitoria de Extensão e Cultura Unemat/Cáceres/MT /Dom Pedro Casaldáliga