«A história é uma bola na parede. Bate e volta. Às vezes na testa» Sebastião Néri, jornalista O mundo mudou muito. Já não existem mais o chachachá nem o «império do mal». Muito menos o «ouro de Moscou» para financiar a «exportação» das revoluções socialistas. Do ponto de vista histórico, não há dúvida de que […]
«A história é uma bola na parede. Bate e volta. Às vezes na testa»
Sebastião Néri, jornalista
O mundo mudou muito. Já não existem mais o chachachá nem o «império do mal». Muito menos o «ouro de Moscou» para financiar a «exportação» das revoluções socialistas. Do ponto de vista histórico, não há dúvida de que demos um passo atrás. O Brasil também está em transformação – só que por enquanto dando um passo adiante. As privatizações e as «reformas» não são mais as vacas sagradas de antigamente. Tampouco há o risco de um belo dia este governo mandar o Exército ocupar empresas para reprimir greves. Em meio a essa contradição histórica, o debate sobre o atual quadro partidário brasileiro é talvez a maior vitrine de pessoas e idéias que resistem ferozmente ao avanço das concepções progressistas no Brasil. Um caso típico é a manifestação do tucanato, a força política que mais encarna atualmente o reacionarismo que varou o século 20 em nosso país.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), por exemplo, em declarações recentes, disse que na parte econômica o governo Lula tem mostrado uma grande «responsabilidade» porque o presidente «exorcizou os fantasmas que tinha sido criados pelo próprio PT nos últimos vinte anos». Má-fé cínica ou obtusidade córnea? Faça a escolha. FHC sabe mais do que ninguém que os «fantasmas» a que ele se refere têm origem na nossa estrutura social fendida em dois extremos e rigorosamente não foram criados pelo PT. Essa patacoada de FHC, portanto, precisa ser entendida como um forte elemento ideológico deste debate acirrado sobre os partidos brasileiros. Do patético, FHC vai para o reacionário. «Parece que houve uma espécie de politização da máquina publica, não só com o partido do governo, mas também com os partidos aliados», disse ele.
Onde está o erro? Ao ex-presidente parece não interessar o fato de que se o Estado não planejar a economia do país os monopólios privados o fazem a seu modo e proporções. Em vez de reduzir o conteúdo e o escopo do Estado para ampliar o espaço privado em seu interior, Lula tenta torná-lo mais sério e respeitável. Onde só havia ciranda financeira, há agora também subsídios produtivos e reuniões de planejamento com o chamado setor produtivo. Igualmente não interessa a FHC reconhecer que Lula defendeu o fortalecimento do Estado em sua campanha e foi eleito exatamente com essa plataforma. O que está errado, portanto, é a continuidade da política macroeconômica «ortodoxa» – não por acaso elogiada pelo ex-presidente neoliberal. Mas há ainda o lado obscuro da ideologia embolorada do tucanato.
Estilo e conceitos da «Cruzada Cívica»
Em artigo publicado no site Primeira Leitura, propriedade do tucano e ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, o diretor de redação Reinaldo de Azevedo utiliza estilo e conceitos muito parecidos com os da direitista «Cruzada Cívica» de Carlos Lacerda – estridente liderança da UDN que se envolveu em golpes contra Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Maquiavélico, Azevedo posa de «teórico» – «um pouco de teoria ilumina o caminho», escreve ele – para vulgarizar a formulação de Antônio Gramsci inspirada em O Príncipe, de Maquiavel, sobre a teoria do partido político revolucionário. «A ‘revolução’ gramsciana se dá por intermédio do poder tentacular do Moderno Príncipe (o partido), que se utiliza das fissuras do ‘Estado burguês’ e da tolerância política para cultivar os seus valores divergentes», diz o «teórico» tucano.
A verdade é bem outra. Gramsci dizia que Maquiavel foi uma expressão necessária no seu tempo, ligado às condições e às exigências da época. Para ele, o «Príncipe» não pode mais ser um indivíduo, mas um partido, que forma uma vontade coletiva. «O Moderno Príncipe não pode ser uma pessoa real, um indivíduo concreto – só pode ser um organismo, um elemento complexo da sociedade no qual já tenha se iniciado a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e fundamentada parcialmente na ação», escreveu Gramsci.
O DNA dos valores ideológicos
Este organismo já é determinado pelo desenvolvimento histórico, é o partido político – a primeira célula na qual se aglomeram germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais. Gramsci concebe a vontade coletiva como «consciência operosa da necessidade histórica». Ou seja: a necessidade elevada à consciência e convertida em ação transformadora. Mas a vontade coletiva só pode ser desenvolvida na existência de condições objetivas. Sendo assim, torna-se imprescindível que o partido efetue uma análise histórica da estrutura do país dado para um possível direcionamento capaz de atuar efetivamente sobre a realidade.
No Brasil, hoje, isso quer dizer que a tarefa prioritária é enfrentar a teoria liberal de um Estado distante da economia produtiva. Mas para o tucano do Primeira Leitura, qualquer política de aproximação entre classes consiste em tarefa do «Moderno Príncipe» para «alterar o DNA dos valores ideológicos, fazendo com que os adversários passem a duvidar das suas próprias certeza e valores». Sem limites para a vulgarização, Azevedo imita abertamente Lacerda ao dizer que o PT -aqui já sabemos que ele não se refere ao PT especificamente, mas ao conjunto das forças progressistas – age «mais ou menos à feição de certa vespa que põe o ovo no ventre de uma joaninha: a coitada passa à condição de hospedeira de um alien, que dela se alimenta enquanto destrói». «A vinda da larva da vespa à luz coincide com a morte da joaninha», escreveu o «teórico» tucano.
O «partido da eterna vigilância»
Em 1963, Lacerda escreveu: «Os liberais arrependidos, os socialistas retardados, os religiosos tomados de surpresa, os ensaístas deslumbrados, os jornalistas alfabetizados, os intelectuais ressentidos, os desajustados da liberdade, os novos-ricos de certos bancos e os os novos-pobres de certo espírito, formam as mais estranhas contribuições para abrir caminho à propaganda, ao sofisma, às idéias-força da guerra subversiva que os soviéticos movem contra o mundo livre.» Logo em seguida, veio o golpe militar de 1964, que estava sendo ensaiado pela capataz dos Estados Unidos, a UDN, há muito tempo. Partido da elite, assim como o PSDB, a UDN, que se auto-intitulava «o partido da eterna vigilância», surgiu da união de lideranças políticas estaduais da República Velha, no dia 7 de abril 1945.
A data foi cuidadosamente escolhida para lembrar o outro 7 de abril – o de 1831, quando D. Pedro I abdicou -, e reuniu adversários dos tempos imperiais e da República Velha com a finalidade única de derrubar Getúlio Vargas e seu governo progressista. Quando o governo do general Eurico Gaspar Dutra, eleito pelo PSD, apontou sua artilharia para o Partido Comunista do Brasil, os dirigentes da UDN responderam prontamente à proposta do presidente de condicionar seus «bons entendimentos» ao apoio à repressão aos comunistas. Juraci Magalhães, um dos mais ativos udenistas anticomunistas, disse que «se o governo não contar com o apoio da UDN se voltará para os quartéis». Flores da Cunha, outro conhecido udenista, defendeu a cassação dos mandatos comunistas como «politicamente conveniente».
Velha tese retocada pelos liberais
Havia, evidentemente, uma minoria de liberais legalistas, que defendiam a existência do Partido Comunista do Brasil. Otávio Mangabeira, por exemplo, dizia que a cassação dos comunistas era uma «uma rajada sobre a democracia», e defendia a tese de que o «controle» seria muito mais fácil na legalidade do que na ilegalidade. Afonso Arinos revelou em suas memórias que a UDN estava dividida pelo anti-comunismo extremado e pelo governismo de certas facções estaduais. Essa política udenista evoluiu para o rompimento do governo Dutra com a União Soviética em 1947 e a criação, sob a tutela dos Estados Unidos, da Escola Superior de Guerra em 1949 – responsável pelas doutrinas de «segurança nacional» cujos efeitos seriam sinistramente sentidos a partir de 1964.
Hoje, a mesma tese defendida pelos liberais no período que sucedeu o Estado Novo volta, retocada por gente como o «teórico» tucano Azevedo. Segundo ele, a aceitação da atuação de um partido que se organiza para ficar no poder «depende de quais instrumentos acatamos como legítimos na disputa política». Se naqueles tempos o «comunismo» era o «inimigo perigoso», hoje, como diz literalmente Azevedo, o PT, como o Partido Comunista Chinês, exerce um um comando incompatível «com as melhores conquistas da sociedade democrática e do Estado de Direito». Essa formulação autoritária desconsidera uma premissa democrática básica da disputa política: não há classe que não aspire ao poder.
A causa dos ataques do tucanato
A burguesia, embora covarde devido à sua fraqueza econômica frente ao latifúndio, lutou para conquistar o poder até o advento da República. Desde então, vem lutando para mantê-lo frente às aspirações políticas e econômicas das classes inferiores. Depois da tentativa do Marechal Deodoro de conciliar as aspirações da burguesia e as do latifúndio, Floriano Peixoto, representando setores mais radicalizados da burguesia e a pequena-burguesia, favoreceu a indústria nacional e chegou a sonhar com a expulsão do capital estrangeiro do país. Em seguida veio a tréplica de Prudente de Morais, que cedeu terreno para o latifúndio fazer aliança com a burguesia – tradição da elite brasileira no período republicano que hoje configura-se na aliança estratégica do PSDB com o PFL.
Como se vê, toda a argumentação dos tucanos em torno das «tradições republicanas» para atacar a oposição ideológica ao liberalismo se choca com a realidade. O fato é que a derrota do ciclo neoliberal em 2002 determinou uma maior participação popular no poder – com todas as necessárias ressalvas que se possa fazer ao governo Lula. A reação, portanto, é à possibilidade de abalo no hermetismo da «blindagem» construída pelos liberais da «era FHC» na área econômica. Uma força política com esse poder abriria clareiras para uma espécie de reedição de políticas desenvolvimentistas que fizeram sucesso no passado. Abriríamos caminho para que o capital fosse investido na produção e não na especulação. E os interesses liberais ficariam seriamente comprometidos. Eis a verdadeira causa dos ataques do tucanato.
*Jornalista, autor dos livros «Maurício Grabois – Uma Vida de Combates» e «Testamento de Luta – A Vida de Carlos Danielli», integra a equipe do Vermelho e o Conselho de Redação da revista Debate Sindical, é membro da Comissão Estadual de Formação (Cefor) do PCdoB no Estado de São Paulo e foi diretor de imprensa do Sindicato dos Metroviários de São Paulo.