Milhares de pessoas nas ruas, confrontos com a polícia, indignação e revolta espontânea. Esta breve descrição poderia estar se referindo à «revolta de catraca», ocorrida em Florianópolis em junho e julho deste ano. Mas esta descrição também pode se referir a uma rebelião popular, que ganhou o nome de Novembrada, ocorrida no dia 30 de […]
Milhares de pessoas nas ruas, confrontos com a polícia, indignação e revolta espontânea. Esta breve descrição poderia estar se referindo à «revolta de catraca», ocorrida em Florianópolis em junho e julho deste ano. Mas esta descrição também pode se referir a uma rebelião popular, que ganhou o nome de Novembrada, ocorrida no dia 30 de novembro de 1979, quando da visita do general-presidente João Batista Figueiredo à capital catarinense. Há poucos meses, quando acontecia o revolta da população (principalmente de estudantes), contra o aumento das tarifas do transporte urbano, muitos foram os cronistas que relembramos e comparamos ambas as revoltas, a da catraca e a Novembrada.
A «revolta da catraca» se deu contra o acúmulo de aumentos nas passagens do transporte, ao mesmo tempo que a população fica cada vez mais pobre e é obrigada a ir morar em regiões mais distantes da cidade. Com isso, a dificuldade de conseguir emprego cresce, aumentando ainda mais um hoje já grande setor de trabalhadores informais, particularmente de comércio de qualquer bugigangas que posso agradar alguém. Altas passagens, baixos salários, desemprego e trabalho informal, foram estas as causas que levaram este ano a população de Florianópolis a ir para as ruas (fechando importantes vias da cidade), enfrentar a polícia (mesmo diante de ameaças de utilizar da força do exército) e fechar as pontes de acesso à cidade (o que chamou a atenção de todo o Brasil).
No caso da Novembrada, há também uma série de elementos entrelaçados. Normalmente toma-se como ponto de partida da análise a inauguração de uma placa de bronze em homenagem ao marechal Floriano Peixoto, na Praça XV de Novembro, no centro da cidade. Este fato teria sido o estopim da revolta.
A cidade fundada em 1894 na Ilha de Santa Catarina recebeu o nome de Nossa Senhora do Desterro (ou apenas Desterro), em lembrança dos colonizadores portugueses mandados à força para cá. A Proclamação da República, através de um golpe militar fez ascender ao poder o marechal Deodoro da Fonseca como primeiro presidente do Brasil. Outro golpe, em 1891, faz chegar ao poder o marechal Floriano Peixoto, chamado de «marechal de ferro». Isso deu origem a várias revoltas pelo país, entre as quais a da Revolução Federalista, em Desterro.
Moreira Cesar, do Rio de Janeiro, foi designado por Floriano Peixoto para pôr fim à revolta em Desterro. A partir daí, serão perseguidos de forma implacável os opositores do marechal Floriano Peixoto, dos quis, entre civis e militares, quase duzentos serão fuzilados. Como se já não bastasse a repressão e o fuzilamento, a população ainda foi humilhada ao ter o nome da cidade mudado para Florianópolis (ou «cidade de Floriano»), em homenagem ao seu algoz.
A placa de bronze em homenagem ao marechal Floriano Peixoto havia sido enviada pelo presidente João Figueiredo ao governador Bornhausen uma semana antes de sua visita a Florianópolis. O oligarca Jorge Bornhausen era o «governador biônico» de Santa Catarina, homem de confiança e pilar da ditadura no estado, tendo ao seu lado Esperidião Amim, Secretário dos Transportes.
A Novembrada foi uma rebelião ocorrida na Praça XV de Novembro (onde se pretendia colocar a placa, devendo esta ser inaugurada pelo presidente em sua visita), em frente ao Palácio do Governador (atual Museu Cruz e Souza). Esta era uma forma de tornar mais popular o governo pouco popular de Figueiredo.
Fazem parte desse período também o início de um processo de aberturas democráticas, que iam desde o fim do bi-partidarismo até a anistia ao perseguidos políticos. No centro disso, porém, estava uma profunda crise econômica e o esgotamento do modelo da ditadura diretamente controlado pelo imperialismo, mais precisamente pelos Estados Unidos (e suas empresas). A visita de Figueiredo, nesse sentido, buscava mostrar a imagem de um presidente que priorizava maior contato com a população, e mostrar que o regime estava mudando. João, o presidente da conciliação, era o slogan do governo. Isso, todavia, não conseguiu convencer muita gente.
Em Florianópolis, a informação sobre a placa provocou grande revolta desde o início. Partiu do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFSC a iniciativa de mobilizar os estudantes da universidade, tendo sido realizada uma reunião na véspera da visita do presidente, de onde se organizou um pequeno ato e se elaborou o seguinte texto para um panfleto:
«Hoje, após 15 anos de repressão, o governo nos presenteia com a visita de seu chefe, o general João Batista Figueiredo. Nesses anos todos, o povo pagou com suor as mordomias dos caciques governamentais. Pagou com seu suor quando viu a inflação cada vez mais alta e seu salário cada vez mais baixo. Paga com seu suor quando o preço dos gêneros alimentícios aumenta a níveis exorbitantes, fazendo com que as famílias possam apenas sonhar com a comida que os homens do governo esbanjam. Por isso, devemos deixar claro que, por mais que seja a campanha publicitária que o governo faça para mudar sua fachada, não vai conseguir enganar o povo. Quando o general João afaga com sua mão a cabeça de uma criança, esconde a outra mão que sustenta o fato de hoje existirem milhares e milhares de crianças brasileiras abandonadas e famintas. Apesar do general João achar que seu problema não é o povo e sim a nação ele se esquece que cada aumento de gasolina afeta diretamente os trabalhadores que dependem do transporte como meio de vida. Quem viaja de avião a jato e passeia de galaxie (às custas do povo) nunca vai se preocupar com o aumento da gasolina. Igualmente, quem está habituado a receber banquetes de 6 mil talheres, 3 mil quilos de carne, 6 mil litros de chopp (também às custas do povo) pouco está se importando com o preço de um prato de comida. O povo não se engana mais. Exige melhores condições de vida.»
No dia 29 de novembro, a placa em homenagem a Floriano Peixoto foi colocada na Praça XV, para ser inaugurada no dia seguinte pelo presidente. No dia 30 pela manhã, Figueiredo desembarcou no Aeroporto Hercílio Luz. Era uma sexta-feira, «ponto facultativo». Crianças e adolescentes de escolas públicas foram obrigados a saudar o presidente, quando de sua passagem pelas ruas, acenando com pequenas bandeiras do Brasil e de Santa Catarina. A saudação mais marcante, todavia, não foi por parte das crianças. Quando o presidnete passava em carro oficial pela Costeira, no caminho para o Palácio do Governo, o general foi recebido com vaias por centenas de donas de casa, que batiam em panelas vazias, como a querer mostrar ao presidente que não tinham o que comer.
Na praça XV, tendo o presidente chegado ao Palácio no Governo, após um início calmo, se fez um grande tumulto. Estudantes da UFSC entregavam o panfletos, corriam da polícia, chamavam palavras-de-ordem. Familiares das vítimas de Anhatomirim, indiganados também, dirigiram-se ao local. Taxistas, o quais até hoje tem um posto em frente ao Palácio, estavam também indignadas com o aumento dos combustíveis. Não demorou muito para que uma multidão revoltosa começasse a enfrentar a polícia, ainda que os membros do DCE tentassem organizar e acalmar a multidão. Depois disso, na praça XV, o símbolo da vitória popular: a placa colocada na praça foi arrancada pela multidão e destruída.
A Novembrada deixou inúmeras pessoas feridas. Sete estudantes universitários foram presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional. O material da TV Cultura, que fazia a cobertura, foi apreendido. Porém, a repercussão política que teve fez com que revoltas semelhantes ocorressem em outros lugares do país, rumo ao movimento que ficou conhecido como Diretas Já. A revolta em Florianópolis havia derrotado Figueiredo, sua estratégia de fazer um governo populista e os plano da ditadura para tornar seu regime mais «agradável».
A lição das ruas de Florianópolis, junto com a das greves operários no ABC paulista, mostravam que a ditadura não deveria ser melhorada, mas sim derrotada. Da mesma forma que em 1979 a Novembrada derrotou a ditadura e as oligarquias que a sustentavam, em 2004 a «revolta da catraca» (derrotando o mesmo inimigo) fez as passagens voltarem ao seu preço anterior e, pouco depois, levando à conquista do passe livre estudantil.
Sobre o tema:
MIGUEL, Luis Felipe. Revolta em Florianópolis: a Novembrada de 1979. Florianópolis, Insular, 1995.
PAREDES, Eduardo (dir.) Novembrada. Brasil, 1998.
SROUR, Robert Henry. A política dos anos 70 no Brasil. São Paulo, Econômica, 1982.