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A confissão do torturador

Fuentes: Porto Alegre 2003

Como uma compensação, o sistema de poder confessa sua verdadeira identidade através das torturas que inflige. Nas câmaras de tormento, os que mandam arrancam sua máscara. Assim ocorre no Iraque, para citar um exemplo. Para apoderar-se do Iraque apesar dos iraquianos e contra os iraquianos, as tropas de ocupação atuam com realismo: pregam a democracia […]

Como uma compensação, o sistema de poder confessa sua verdadeira identidade através das torturas que inflige. Nas câmaras de tormento, os que mandam arrancam sua máscara.

Assim ocorre no Iraque, para citar um exemplo. Para apoderar-se do Iraque apesar dos iraquianos e contra os iraquianos, as tropas de ocupação atuam com realismo: pregam a democracia e a liberdade e praticam a tortura e o crime. Quem quer ao fim, quer aos meios. Ou por algum acaso alguém pode crer que existe outra maneira de roubar um país?

O resto é puro teatro: as cerimônias, as declarações, os discursos, as promessas e a transferência da soberania, que passa dos Estados Unidos aos Estados Unidos.

Ocorre que o poder não diz o que diz. Por exemplo: quando diz «terrorismo no Iraque», em muitos casos deveria dizer: «resistência contra a ocupação estrangeira».

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Quando se publicaram as fotos e estourou o escândalo, as cúpulas do poder político e militar cantaram em coro os salmos de sua auto-absolvição:

– «São casos isolados» – «São casos patológicos» – «São umas tantas maçãs podres» – «São perversos que desonram o uniforme».

Como de costume, o assassino pôs a culpa na faca.

Mas esses soldados ou policiais que enlouquecem o prisioneiro dando-lhe descargas de eletricidade, ou submergindo-lhe a cabeça em merda, ou partindo-lhe o cu, não são mais que instrumentos: funcionários que ganham o soldo cumprindo sua tarefa em horário de trabalho. Alguns trabalham com falta de vontade e outros com fervor, como essas entusiasmadas senhoritas que se fotografaram enquanto humilhavam seus torturados iraquianos e os exibiam como troféus de caça. Mas todos, os apáticos e os fervorosos, são burocratas da dor que atuam a serviço de uma gigantesca máquina de picar carne humana. Loucos? Perversos? Pode ser, mas o pretexto patológico não absolve o poder imperial que necessita da tortura para assegurar e ampliar seus domínios, porque esse poder está muito mais louco e é muito mais perverso que os instrumentos que utiliza. E nada tem de anormal que um poder atrozmente injusto se utilize de métodos atrozes para perpetuar-se.

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Nada tem de anormal, tampouco, que esses métodos atrozes não se chamem por seu nome.

A Europa sabe que onde manda capitão não manda marinheiro. A declaração da União Européia contra as torturas no Iraque não mencionou a palavra tortura. Essa desagradável expressão foi substituída pela palavra «abusos». Bush e Blair falaram de «erros». Os jornalistas da CNN e de outros meios de massa não puderam utilizar a palavra proibida.

Anos antes, para que os prisioneiros palestinos fossem legalmente triturados, a Suprema Corte de Israel havia autorizado «as pressões físicas moderadas». Os cursos de torturas que há muito tempo recebem os oficiais latino-americanos na Escola das Américas denominam-se «técnicas de interrogatório». No Uruguai, que foi campeão mundial na matéria durante os anos de ditadura militar, as torturas se chamavam, e ainda se chamam, «processos ilegais».

Segundo a Anistia Internacional, a venda de aparatos de tortura no mundo é um brilhante negócio para umas tantas empresas privadas dos Estados Unidos, Alemanha, Taiwan, França e outros países, mas esses produtos industriais são «meios de autodefesa» ou «material para o controle da delinqüência».

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Por sua vez, mencionaram sim a palavra tortura, com todas as suas letras, os pesquisadores que interrogaram a população dos Estados Unidos no ano de 2001, pouco depois da derrubada das torres de Nova Iorque. E quase a metade da população, 45 por cento, respondeu que a tortura não parecia má «se aplicada contra os terroristas que se negam a dizer o que sabem».

Seis anos antes, no entanto, a ninguém havia ocorrido torturar o terrorista Timothy McVeigh quando ele se negou a dar o nome de seus cúmplices. A bomba que McVeigh pôs em Oklahoma matou 168 pessoas, incluindo muitas mulheres e crianças, mas era branco, não era muçulmano e havia sido condecorado na primeira guerra do Iraque, onde aprendeu a cozinhar purê de gente.

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Contra o terrorismo, tudo vale. Isto tem proclamado o presidente Bush, em mil ocasiões; e o repetido o eco Blair. Ambos continuam brindando pelo êxito de suas cruzadas. Seguem dizendo: «O mundo é agora um lugar mais seguro», enquanto o mundo estoura e a cada dia a violência gera mais violência e mais e mais.

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Guantánamo é o símbolo do mundo que nos espera. Seiscentos suspeitos, alguns menores de idade, definham nesse campo de concentração. Não têm nenhum direito. Nenhuma lei os ampara. Não têm advogados, nem processos, nem condenações. Ninguém sabe nada deles, eles não sabem nada de ninguém. Sobrevivem em uma base naval que os Estados Unidos usurparam de Cuba. Supõe-se que sejam terroristas. Se são ou não são é apenas um detalhe que não tem a menor importância.

Ali foi onde o general Ricardo Sánchez ensaiou trinta e duas formas de tortura, chamadas «táticas de pressão e intimidação», que logo implantou nas prisões do Iraque.

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Desde a derrubada das torres de Nova Iorque, a tortura vem recebendo numerosos elogios. Foi desencadeado um bombardeio de opiniões jurídicas e jornalísticas aberta ou veladamente favoráveis a este método institucional de violência, ainda que nunca, ou quase nunca, o chamem como se chama. Estas apologias da infâmia, que provêm do poder, ou de fontes próximas, sustentam que a tortura é legítima para defender a população desamparada ante as ameaças que espreitam, porque existem meios de luta de moralidade duvidosa que resultam inevitáveis contra os inescrupulosos assassinos que praticam o terrorismo e o promovem e que jamais dizem a verdade.

Mas, se foi assim, quem havia de torturar? Quem são os homens que mais têm mentido neste século XXI? Quem são os que mais inocentes têm matado, sem nenhum escrúpulo, em suas guerras terroristas do Afeganistão e Iraque? Quem são os que mais têm contribuído à multiplicação do terrorismo no mundo?

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Agora abundam os surpreendidos e os indignados, mas a tortura não foi utilizada por erro nem por casualidade contra a população iraquiana. As tropas de ocupação a empregaram como era costume, por ordens muito superiores, sabendo do que faziam e para quê o faziam.

Para quê? Não há nenhuma prova de que a tortura tenha servido para evitar um só atentado terrorista. No caso do Iraque, nem sequer tem sido útil para capturar algum dos foragidos importantes. E mais, Saddam Hussein não caiu graças à tortura, e sim graças ao dinheiro que comprou um delator.

A tortura arranca informações de escassa utilidade e confissões de improvável veracidade. E, no entanto, é eficaz. Por isso foi aplicada e se continua aplicando: o que é eficaz é bom, segundo os valores que regem o mundo. A tortura é eficaz para castigar heresias e humilhar dignidades, e sobretudo é eficaz para semear o medo. Bem o sabiam os monges da Santa Inquisição e bem o sabem os chefes guerreiros das aventuras imperiais de nosso tempo: o poder não emprega a tortura para proteger a população, e sim para aterrorizá-la.

Será tão eficaz quanto o poder crê que seja?

<> Tradução: Tiago Soares
22/07/2004