A Argentina, com sua bela e charmosa Buenos Aires, ao longo do século XX parecia quase um prolongamento do mundo europeu, com seus cafés, seus bares, sua arquitetura, seu tango, seu povo, sua cultura, seus direitos, suas lutas. Como toda nuestra America, tinha também suas mazelas sociais. Mas destoava do conjunto em muitos pontos. Cenário […]
A Argentina, com sua bela e charmosa Buenos Aires, ao longo do século XX parecia quase um prolongamento do mundo europeu, com seus cafés, seus bares, sua arquitetura, seu tango, seu povo, sua cultura, seus direitos, suas lutas. Como toda nuestra America, tinha também suas mazelas sociais. Mas destoava do conjunto em muitos pontos.
Cenário muito distinto e diverso temos, nas últimas três décadas, na Argentina e em sua Buenos Aires, que se tornou uma cidade cercada de vulcões sociais, destroçada inicialmente pela delinqüência da ditadura militar e, posteriormente, desertificada pela devastação neoliberal que varreu a América Latina, com a exceção da pequena ilha que teima em ser rebelde, que se machucou muito mas, como um pequeno gigante, tenta de todos os modos resistir. A devastação atingiu (e ainda atinge) do Brasil de Collor e FHC ao México de Salinas e Zedillo, passando pelo Peru de Fujimori, esse pequeno e grotesco bonaparte que no Peru diz que é japonês e no Japão diz que é peruano e que, como gângster, está (como muitos deles) às voltas com a Justiça e com a polícia.
A bela Argentina presenciou, nesse período, alguns bárbaros genocídios. Sua ditadura militar levou a boçalidade ao limite, ceifando brutalmente a vida de milhares de jovens que sonhavam com um país diferente. A tragédia Menem deu o salto seguinte para a barbárie. Com a cara de um peronista, praticou o neoliberalismo, desmontando os direitos públicos e sociais, privatizando tudo que funcionava na res publica argentina, arrebentando as condições de trabalho, financeirizando a economia, mais do que servil ao FMI e aos Estados UNidos e seu império, levando a corrupção do governo a mesclar-se com várias máfias, de todo tipo e calibre. Hoje, fora de seu país, é também caçado pela Justiça, que ensaia sair do pântano menemista.
Por tudo isso, foi gratificante ver recentemente o corajoso e sensível filme-documento de Fernando Pino Solanas, Memória do Saque, uma verdadeira vingança do povo argentino. Pino Solanas realiza uma verdadeira devassa do neoliberalismo em seu país, mostrando, de modo límpido e corajoso, o genocídio neoliberal que se abateu sobre a América Latina, através da fotografia de seu exemplo mais devastador: o caso argentino.
Tudo está estampado: o papel de sustentação do grande capital, sob a hegemonia do capital financeiro, seus mecanismos de lucro, acumulação e seus cânceres da corrupção; o papel servil da burguesia local, desintegradora para dentro e integrada para fora; o Parlamento degradado e o Judiciário conivente. E a mídia cúmplice, com seus reality shows que se »dedicam ao que há de mais vulgar, embotando o espírito e os sentidos para as impressões do belo e do perfeito», oscilando entre o »frívolo e o insulto», para lembrar o genial Goethe em seu clássico Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister.
Solanas mostra, também, em seu libelo, o despertar das vítimas do genocídio: os precarizados, os desempregados, através da rebelião dos piqueteiros com os cortes das vias e estradas de acesso à capital, forma de chamar a atenção da opinião pública frente ao flagelo do desemprego e da fome. Mostra ainda o desencanto da classe média, tudo confluindo para a deposição do governo De La Rua, no majestoso dezembro de 2001, nos dias que abalaram a Argentina.
Menem, Fujimori, Collor, Salinas – e a lista continua aumentando – constituem o lixo da história, suas ruínas. Memória do Saque é parte da vingança dos despossuídos. É parte, também, da vingança da história latino-americana.
* Ricardo Antunes, professor de Sociologia na Unicamp, escreve nesta página às quintas-feiras, de 15 em 15 dias. 5 de agosto de 2004.