1. As razões do golpe e da ditadura – Em 31 de março p.p. completaram-se 40 anos do golpe militar-empresarial. Organizado e dirigido por setores da classe dominante brasileira (forças armadas, latifundiários, classe média urbana, clero católico e o empresariado industrial-financeiro), o golpe contou com o apoio diplomático, logístico e militar do governo dos Estados […]
1. As razões do golpe e da ditadura – Em 31 de março p.p. completaram-se 40 anos do golpe militar-empresarial. Organizado e dirigido por setores da classe dominante brasileira (forças armadas, latifundiários, classe média urbana, clero católico e o empresariado industrial-financeiro), o golpe contou com o apoio diplomático, logístico e militar do governo dos Estados Unidos, como provam documentos recentemente liberados por seu Departamento de Estado.
O objetivo do golpe era o de barrar, pela força e pelo terrorismo de Estado, as Reformas de Base anunciadas pelo governo Jango. Inseridas em seu contexto histórico as Reformas eram vistas, pela classe dominante brasileira, como uma grave ameaçava aos seus arraigados interesses. O conflituoso clima da Guerra Fria, que opunha Estados Unidos e União Soviética, era usado como peça de propaganda para amedrontar ainda mais a classe média, atribuindo às Reformas o papel de servir como o primeiro passo do Brasil rumo ao «comunismo ateu». O resultado do golpe e da ditadura que lhe seguiu foi plenamente atingido. Manteve pela força um modelo econômico e social concentrador de renda, que acentuou nossas imensas desigualdades sociais e que não mexeu em nossas graves distorções regionais. Por fim, forjou uma burguesia que consolidou-se como sócia menor do capital imperialista e que resumiu seu projeto nacional a modernizar nossa condição subdesenvolvida.
Esse modelo anti-popular e anti-social imposto pela ditadura, só poderia ser garantido pela repressão policial, pela intervenção nos sindicatos combativos, pela censura nos meios de comunicação, pela tortura e assassinato dos opositores. Ao longo de vinte e um anos milhares de lutadores populares, que generosamente entregaram suas vidas e o melhor de suas energias para derrotar a ditadura, sofreram de alguma maneira com sua violência. E dentre estes, as vítimas de tortura, não importa se sobreviveram ou se morreram, são os casos mais emblemáticos.
E dentre todos os que passaram por esta terrível violência, Vladimir Herzog é o caso mais expressivo. Militante do PCB, o jornalista foi preso em 24 de outubro de 1975. Levado para a sede do DOI-CODI de São Paulo, na rua Tutóia, aparece morto no dia seguinte. A foto que o mostra sem vida em uma cela, simulando um suicídio por enforcamento, expôs com crueza a violência do Estado burguês brasileiro. Sua morte causou uma profunda revolta e indignação, acentuando a crise de legitimidade da ditadura, impulsionando a luta por seu fim. Seu sacrifício, assim como o de muitos outros, foi o preço que toda uma geração de militantes pagou para livrar o Brasil da ditadura e das misérias sociais que há séculos nos aflige.
2. Os militares e as razões alegadas para o golpe e a ditadura – Passados dezenove anos de sua morte, Vladimir Herzog volta a «incomodar» àqueles que hoje, vestidos com a pele de democratas, não se livram de sua essência autoritária. As fotos que se presume serem dele, apressadamente colocadas em dúvida por uma perícia da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), provocaram uma reação virulenta das forças armadas. A nota divulgada pelo Centro de Comunicação Social do Exército (Cecomsex), publicada no jornal Correio Braziliense, se por um lado é um delírio que faz uma interpretação inadmissível e absurda da história, por outro reflete a visão que os militares possuem sobre os crimes por eles cometidos durante o período discricionário, bem como expressa a visão sobre o tipo de democracia que a burguesia brasileira permite que tenhamos.
Vejamos porque, a partir de uma análise detalhada da nota. Vamos decompo-la frase por frase para compreender as justificativas alegadas pelos militares, que legitimaram suas ações durante os vinte e um anos da ditadura. Ela nos permitirá entender as razões que guiaram suas ações repressivas.
Vejamos o que diz a nota:
«As medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas. O Movimento de 1964, fruto de clamor popular, criou, sem dúvidas, condições para a construção de um novo Brasil, em ambiente de paz e segurança.» Centro de Comunicação Social do Exército (Cecomsex)
A nota começa falando sobre «as medidas tomadas pelas ‘Forças Legais'». As tais Forças Legais – leia-se forças armadas – não adquiriram essa condição através de um processo democrático e legítimo, dentro das regras eleitorais estabelecidas pela democracia burguesa, mas por um ato de força que destituiu um governo legitimamente eleito e escolhido pelo povo, que contava à época com grande apoio popular.
A seguir a nota fala que as medidas tomadas – e que ao não especificá-las nos permite concluir que todas elas, inclusive a tortura e o assassinato – «foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo». Quem recusou o diálogo foram os patrocinadores do golpe e da ditadura, especificados no primeiro parágrafo. Ao usarem a força como forma de barrar o crescente protagonismo popular daquele período, além de impedir as Reformas de Base que se avizinhavam, foi a coligação empresarial-militar quem recusou o diálogo. Todas as suas medidas posteriores acentuaram o caráter autoritário e repressivo do regime por ela instaurado. A reação armada à ditadura por parte de agrupamentos de esquerda, ainda que muitos oportunistas e pusilânimes tentem igualá-la à violência do regime, e sem entrar no mérito se essa estratégia estava certa ou errada, é perfeitamente justificável. Ela foi resultado do diálogo que os próprios golpistas interromperam.
Na mesma frase a nota, ainda obcecada em justificar as ações criminosas do Estado militar e ditatorial, conclui que as tais medidas tomadas foram conseqüência dos que «optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas». O que a nota procura fazer a todo instante, é uma desqualificação política e moral de todos os que lutaram contra a ditadura. Quem o fez cometeu um crime, pois optou pelo radicalismo e pela ilegalidade. A seguir, a nota procura legitimar a ditadura, ao dizer que a iniciativa de se pegar em armas para desencadear ações criminosas – e, portanto, de se agir com violência – partiu dos que lutaram contra ela. Não está em questão, aqui, quem primeiro acionou o gatilho. O central na nota do Cecomsex está em sua continua tentativa de deturpar a história, a reescrevendo de maneira a fazer parecer que a «iniciativa» de se pegar em armas pelos grupos guerrilheiros, surgiu como uma ação sem razões justifi
cáveis. Desse modo as forças armadas apenas teriam reagido a uma iniciativa violenta que não partiu dela.
Por fim, a nota procura dar um verniz de legitimidade ao golpe e à ditadura, atribuindo-as a um suposto «clamor popular». É como se a participação dos militares no Movimento de 1964 – eufemismo usado para designar o golpe – tivesse sido uma solicitação da sociedade a um ator social com isenção política e moral capaz de colocar um fim à anarquia que vivia-se então. A intervenção das forças armadas teria permitido, segundo a delirante nota, «a construção de um novo Brasil, em ambiente de paz e segurança». Como já vimos em passagem anterior, a ditadura militar unicamente modernizou nossa condição subdesenvolvida. Ela não serviu para construir um novo Brasil, muito menos em uma situação de paz e segurança, pois não era seu objetivo. Ela se interpôs no caminho desse novo país que as lutas operárias e populares do início da década de 1960 vinham gestando.
3. Uma democracia anti-popular – Mas o que a nota do Exército a respeito das fotos que se presume serem de Herzog, tem a ver com o tipo de democracia que temos no Brasil? Para explicar, pedimos um pouco mais de paciência ao leitor.
A ditadura empresarial-militar foi uma medida de força utilizada pela classe dominante brasileira. Sua finalidade, para longe das teses que buscam apresentá-la como uma reação dos militares à quebra da hierarquia e a um iminente caos social, foi a única maneira de modernizar nossa condição subdesenvolvida e dependente, sem fazer concessões de natureza social e democrática ao povo brasileiro. Podemos dizer que as bases estruturais de nossa desigualdade social ainda estão intactas. A modernização econômica e produtiva promovida pela ditadura, bem como pelos governos civis eleitos pelo sistema da democracia burguesa formal na década de 1990, não provocaram qualquer alteração desse quadro. As contra-reformas neoliberais dessa década não só deram condições jurídicas e legais para esse novo ciclo de modernização, como acabaram por blindar o Estado brasileiro de qualquer possibilidade de nele se fazer mudanças de natureza social e democrática, que atendam os interesses populares.
O Estado democrático sob o qual hoje vivemos, é moderno apenas na técnica de votar. Quanto ao seu real conteúdo e significado, estamos muito distantes de qualquer democracia que atenda aos mais profundos anseios populares de se ter um país em que, no mínimo, haja uma diminuição substantiva de nossas imensas desigualdades sociais. Temos uma democracia que apesar de significar, em seu sentido lato, o governo do povo, é cada vez mais anti-popular. Nosso regime político é democrático na técnica de votar, mas é oligárquico em seu conteúdo, pois o controle efetivo e real do poder está nas mãos das corporações empresariais e dos parasitas do capital financeiro e bancário nacional e internacional.
A nota do Exército, chegando ao ponto que nos interessa, ao reagir violentamente a um tema que os próprios militares e a burguesia brasileira querem esquecer, expõe uma opinião que legitima, sem meios termos, a ditadura. Não só por aquilo que ela fez contra os que a ela se opuseram, mas, principalmente, por aquilo que ela impediu: uma maior democratização social e econômica do país. Pois, para evitar que reformas de interesse popular acontecessem, só mesmo a perseguição política, a tortura e a eliminação física do agente individual portador da idéia e da ação transformadora: o militante político. Estabelecer essa conexão é essencial, para compreendermos que as ações autoritárias da ditadura não foram um fim em si. A tortura, a perseguição política e a censura, eram meios de que o Estado burguês se valeu para que o grande capital nacional e internacional, incorporasse progresso técnico e acumulasse capital através de uma brutal exploração da classe trabalhadora.
Essa política de Estado destinada a impedir avanços sociais e econômicos da classe trabalhadora, não se extinguiu com a volta à democracia. A perseguição implacável e feroz contra os lutadores sociais foi amainada, mas não findou por completo. Com o ressurgimento do caso Herzog, fatos pouco noticiados pela grande imprensa voltam a ganhar relativo destaque, demonstrando a persistência do Estado burguês brasileiro em continuar impedindo aquilo que o golpe e a ditadura militar haviam, em sua época, conseguido temporariamente.
Denúncias de espionagem feitas pelo Exército e por outros órgãos de segurança do Estado burguês (como a Polícia Federal e a Abin), contra os movimentos sociais e partidos de esquerda, foram reveladas no bojo das fotos sobre o caso Herzog. A tortura e o assassinato cometidos pelos órgãos de segurança e informação, foram substituídos pelo monitoramento constante e atento a todos os passos dados pelas organizações sociais e de esquerda, que possam representar ameaça ao status quo econômico e social dominante. Não apenas os movimentos sociais, os partidos de esquerda e o movimento sindical foram e continuam sendo espionados, como o próprio Lula, ao longo da década de 1990, foi alvo da atenção dos serviços de inteligência, como revelou um ex-araponga do Exército .
4. O papel da democracia na luta pelo socialismo – Todos esses fatos, tomados em seu conjunto, nos permite ver que a democracia que temos não é apenas limitada quanto às possibilidades de reformas sociais de caráter progressista, como ainda continua tutelada e vigiada para que os trabalhadores sobre ela não exerçam qualquer tipo de ação transformadora. Mesmo a democracia que convencionamos chamar de burguesa – resumida a eleições periódicas e cujo poder que emana do povo é feita por seus representantes eleitos – é um inconveniente à própria burguesia. Lênin, o grande teórico e líder da Revolução Russa, foi capaz de perceber os limites que a própria burguesia coloca à sua democracia, ao afirmar que:
«… la revolución burguesa es más beneficiosa para el proletariado que para la burguesia. He aquí, justamente, en qué sentido es indiscutible esta tesis: a la burguesia le conviene apoyarse en algunas de las supervivencias del pasado contra el proletariado, por ejemplo, en la monarquía, en el ejército permanente, etc. A la burguesía le conviene resueltamente todas las supervivencias del pasado, sino que deje en pie algunas de ellas; es decir, que esta revolución no sea del todo consecuente, no se lleve hasta el final, no sea decidida e implacable. Los socialdemócratas expresan a menudo esta idea de un modo un poco distinto, diciendo que la burguesía se traiciona a sí misma, que la burguesía es incapaz de un democratismo consecuente.»
(DOS TACTICAS DE LA SOCIALDEMOCRACIA EN LA REVOLUCION DEMOCRATICA, 1905) Ediciones en Lenguas Extranjeras, Pekin, 1973.
Se nós, trabalhadores brasileiros – e mesmo a esquerda comprometida com a revolução socialista em nosso país – temos algo a aprender com os anos de chumbo da ditadura militar e com o atual regime político que impera em nosso país – cujo sentido, repetimos, é o de ser democrático e moderno na técnica de votar, mas oligárquico e conservador em seu conteúdo e objetivo – é o de que temos de nos apropriar do conceito de democracia, tomando-a em seu sentido lato, ou seja, uma sociedade em que o poder emana do povo e cujo governo é para o povo.
Entendendo a categoria povo como um complexo social que engloba a classe operária, os demais trabalhadores da cidade e do campo, os assalariados das camadas médias, os servidores públicos, os trabalhadores autônomos, os precarizados, os desempregados e a pequena burguesia, lutar por uma completa democratização da vida econômica, política e social, significa conquistar reformas institucionais que ampliem o grau de equidade social, resultando na universalização do acesso aos produtos materiais e culturais criados pelo trabalho humano.
Sabemos que a palavra «reformas», aqui empregada, pode chocar e ser vista como uma heresia pelos que se acham mais revolucionários. Mas, como bem definiu Rosa Luxemburgo em seu debate com o reformista Edward Bernstein, a reforma não é incompatível com a revolução. A luta por reformas para que se melhore suas condições de vida, é o que coloca os trabalhadores em movimento. A necessidade de se lutar pelo socialismo, os trabalhadores descobrem não no começo da caminhada, mas ao longo de seu percurso.
Quando falamos em reformas institucionais, não estamos aqui a vender ilusões de que retoques legais que minimizem os efeitos da exploração capitalista, resolverão a situação de exploração dos trabalhadores. Nem tampouco somos reformistas quanto ao método de ação política atribuída a essa corrente de pensamento, que concentra suas energias na conquista paulatina e sem pressa, a cada eleição, de vagas nas Câmaras de Vereadores ou no Congresso Nacional, até se atingir uma maioria parlamentar.
A reforma, para nós, são medidas de caráter popular (como a reforma agrária e a reforma urbana, por exemplo), que servem para ampliar o grau de equidade social. Só por essa razão, um programa de reformas que mobilize o povo, é constituído por bandeiras unificadoras da sociedade, que pretendem mexer nas instituições políticas e econômicas em que se concentra o poder político da burguesia e que são as fontes geradoras da desigualdade social. E para alcançar esse objetivo, é preciso a construção de grandes movimentos de massa, cujo elemento mobilizador sejam as organizações sociais criadas pelo próprio povo. É com suas reivindicações de conteúdo democrático e radical, que o povo fará seu enfrentamento direto e concreto com a burguesia, dele tirando ensinamentos, aprendendo lições e constatando por sua própria experiência, que só transformações profundas poderão alterar o atual quadro de miséria social.
A democracia, portanto, não deve ser rejeitada como uma mera forma burguesa de dominação, mas apropriada pelos trabalhadores em seu sentido radical e conseqüente. O que tem de ser rejeitado pelos trabalhadores, é a democracia em seu sentido meramente formal, que ordinariamente conhecemos e que corresponde justamente aos interesses da burguesia.
Campinas, outubro de 2004.
Autor: Renato Nucci Junior
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Renato Nucci Junior