Caracas, capital venezuelana com seus 5 milhões de habitantes, é um vale cercado por morros miseráveis de todos os lados. Na curta estadia neste país efervescente, entre 14 e 18 de agosto, foi possível conhecer muitos moradores destas habitações precárias. O melhor passaporte para entrevistá-los era afirmar: «Sou brasileiro». A recepção era calorosa, empolgante, expressa […]
Caracas, capital venezuelana com seus 5 milhões de habitantes, é um vale cercado por morros miseráveis de todos os lados. Na curta estadia neste país efervescente, entre 14 e 18 de agosto, foi possível conhecer muitos moradores destas habitações precárias. O melhor passaporte para entrevistá-los era afirmar: «Sou brasileiro». A recepção era calorosa, empolgante, expressa numa única palavra: «Lula». O interesse pelos rumos do Brasil é enorme neste povo que se politiza de maneira acelerada e que aprendeu a valorizar a integração latino-americana como o melhor caminho para enfrentar «el diablo George Bush».
Esta politização ajuda a entender a esmagadora vitória de Hugo Chávez no referendo de 15 de agosto com quase 60% dos votos. O povo dos morros votou no ao passado, no ao retrocesso, no ao retorno das elites, no ao imperialismo. A periferia pobre se rebelou contra os parasitas residentes na parte leste luxuosa de Caracas, uma gente arrogante nascida na Venezuela, mas com a mente e muitos dólares em Miami. Em certo sentido, o referendo concluiu um ciclo, que teve início nas rebeliões populares de 1989, o Caracazo, prosseguiu com o levante militar de 1992, e ganhou ímpeto com a vitória eleitoral de Chávez em 1998.
Na entrevista coletiva no Palácio Miraflores, na tarde do dia 16, um presidente revigorado e radiante com a ratificação do seu mandato decretou: «A IV República [o reinado da oligarquia, da submissão aos EUA e da democracia de fachada] está morta. Nasceu a V República, a República Bolivariana». Citando um de seus autores preferidos, o revolucionário italiano Antonio Gramsci, lembrou que até o referendo «o velho estava morrendo, mas ainda não havia morrido; e o novo estava nascendo, mas ainda não havia nascido… A partir de agora, a energia da revolução bolivariana será ainda maior. O processo revolucionário vai se aprofundar. Não tem mais retorno». As suas palavras impactam o auditório com mais de 150 jornalistas!
BAIRRO DE LA PASTORA
De onde provêem tamanha convicção? Aonde reside a vitalidade da revolução bolivariana? O que explica milhões de pessoas nas filas, agüentando um tórrido calor por mais de 12 horas, num país conhecido pelos altos índices de abstenção nas eleições (em que as praias ficavam cheias e as urnas, vazias)? Para entender esse fenômeno, que corrobora a originalidade do processo bolivariano, basta conversar com os moradores dos bairros pobres de Caracas. A esperança está estampada nos rostos dessa gente simples, que recobrou a dignidade e está disposta a tudo («uma filinha não é nada») para garantir o avanço da sua «revolução».
La Pastora é um dos bairros mais antigos de Caracas. Ainda há muitas casas no estilo colonial, da época do domínio espanhol. As antigas e as novas habitações são precárias, sem acabamento. Tijolos expostos confirmam que é um bairro popular, habitado por trabalhadores do setor informal e desempregados. Por sua proximidade do centro da cidade, também há camadas médias residindo nesta parte do morro, como médicos e advogados. A chegada do ônibus com os observadores internacionais dos EUA, El Salvador, Colômbia e Brasil evidencia o carisma de Chávez. As janelas das casas estão tomadas com os cartazes vermelhos do no; os muros estão grafitados com frases e desenhos em defesa da revolução bolivariana.
Nos quarteirões, casas modestas abrigam as sedes das patrulhas eleitorais, compostas por 10 militantes responsáveis cada um por conversar com mais 10 moradores. Muitos vestem camisetas das missões, os programas sociais de saúde, educação e outros que são geridos diretamente por vários comitês populares. As reuniões são freqüentes, fazendo o controle e mapeamento do bairro. Chama a atenção a forte presença da juventude. Os carros, caindo aos pedaços, tocam alto as músicas bolivarianas. «Uh, ah, Chávez não se vá», cantam e dançam os jovens nas ruas. O clima, à véspera do referendo, é de festa e total confiança.
Dois senhores, entusiasmados com a irreverência, alegria e politização da juventude, explicam as razões de tanto engajamento no La Pastora. «Estamos construindo um país de pessoas ativas, destemidas. Elas é que vão defender as conquistas da revolução de qualquer forma. É pátria ou morte!», argumenta Alfredo Alvarez, 53 anos. «É outra Venezuela. Os ricos nunca ligaram para o povo. Eles não acreditavam na nossa inteligência, na nossa força. Agora, tudo está mudando», completa Alberto Vaisques, 57 anos. Mas são os jovens que rodeiam o brasileiro para anunciar o nascimento desta «nova Venezuela», onde o povo parece ter despertado de um longo sono e adquire consciência política com uma velocidade espantosa.
Dois irmãos, animados, argumentam. «Chávez está preocupado com a juventude. Hoje temos acesso à universidade, ao tratamento médico, ao esporte. Não somos jogados na marginalidade, na criminalidade. A Venezuela não é mais o país só dos ricos. O povo pobre ocupou o seu espaço e não aceita retrocessos. Essa é a nossa única esperança», afirma Ivan Justo, 19 anos. Umberto, de 22 anos, evidencia a evolução desta consciência. «Chávez nos ensinou a acreditar na nossa força, a acreditar nos nossos heróis nacionais, a amar a nossa pátria. Os militares e o povo pobre despertaram e estão construindo uma experiência diferente. Não é socialismo e nem este capitalismo desumano; é o bolivarismo», teoriza.
Essa intensa participação inclusive já seduz parcelas das «classes médias» antes temerosas com o governo Chávez. «Os profissionais que residem no nosso bairro, médicos e advogados, já conhecem os avanços da revolução. Vivem com o povo pobre, sabem das nossas dificuldades e reconhecem as melhorias. Eles não estão envenenados pela propaganda mentirosa da TV privada», festeja a secundarista Ana Relis Quintana. Outra estudante, Adriana Carlejo, procura analisar tal conversão. «A revolução bolivariana mudou nossas vidas. Hoje eu tenho a oportunidade de ir para uma universidade; antes isso era impossível, a faculdade era só para os ricos». Glicélia Rivero arremata: «Hoje temos esperanças no futuro, temos dignidade».
O entusiasmo da juventude emociona a deputada Nídia Diaz, a legendária guerrilheira de El Salvador que pegou em armas em 1971, foi fundadora da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional e candidata à vice-presidência da República em 1999. «Este é um processo revolucionário singular, diferente, original. Ele se expressa nas conquistas sociais e na transferência das estruturas do poder aos setores populares. O povo é protagonista da história. Numa fase tão difícil como a atual, diante da fúria do imperialismo, a revolução bolivariana é a alternativa mais avançada ao neoliberalismo em nosso continente».
BAIRRO 23 DE JANEIRO
O bairro 23 de Janeiro é o mais populoso de Caracas, com cerca de 500 mil habitantes. É famoso por ser o mais politizado da capital. A data homenageia a queda da brutal ditadura de Pérez Jimenez, em 1958, que teve neste local o principal foco da oposição. Em 13 de abril de 2002, seus moradores voltaram a ocupar a cena política ao desceram o morro e cercarem o Miraflores, exigindo o retorno do presidente deposto por um golpe fascista. Com seus prédios degradados, no que já foi tido como o maior conjunto habitacional da América do Sul, o bairro se orgulha da fama de politizado. Várias faixas nas ruas se gabam de que este é um «território bolivariano». Nos belos grafites as imagens de Simón Bolívar, Che Guevara e Chávez.
Outro motivo de orgulho é a presença constante do presidente da República circulando no bairro. Chávez sempre vota no Liceu Manuel Fajorolo, no cume do morro. Sua chegada para votar, ao meio dia, tumultua a quilométrica cola (fila). Todos querem abraçá-lo. A comitiva presidencial tem enorme dificuldade para adentrar na escola. A propaganda eleitoral está proibida. Na saída, carros, motos e bicicletas perseguem o carro do presidente. A patrulha do quarteirão passa sufoco para reorganizar a fila. Muitos saíram de casa para votar no referendo às três horas da madrugada, quando os comandos bolivarianos tocaram cornetas estridentes para avisar sobre o dia decisivo do no contra a oligarquia e o seu chefe, o «diablo Bush».
Todos os entrevistados garantem que Chávez tem mais de 95% de aprovação no 23 de Janeiro. Há até um certo endeusamento do presidente. «Ele é um protegido de Deus», garante Matilde Prata, uma fervorosa católica de 75 anos de idade. «Sou uma venezuelana crioula de verdade e nunca tinha visto um presidente andando sem seguranças pelas ruas deste bairro. Outros presidentes nunca pisaram no bairro. Mandavam representantes ou ofícios», explica. E essa cola enorme no referendo? «Essa filinha não é nada. No paro petroleiro [locaute patronal que durou 63 dias, entre dezembro e fevereiro de 2003], eu enfrentei filas de três dias para conseguir um botijão de gás. Chávez merece qualquer sacrifício. Deus está com ele».
Entre outras conquistas da revolução bolivariana, os moradores destacam a regularização da posse de seus imóveis. «Vivo há 47 anos neste bairro e nunca tive o registro da minha casa; agora o governo garantiu a posse e eu tenho um endereço», diz Estóquio Varga, 56 anos. Os mais jovens falam da possibilidade de ingressar na faculdade. «A juventude está esperançosa e sonha em ingressar na universidade, em ter uma profissão e um futuro», relata Sonimar Ordaz, 21 anos. Os médicos cubanos da Misión Barrio Adentro são um consenso. «Antes, nenhum médico subia o morro. Minha irmã gastou fortuna em cirurgias. Agora, os cubanos atendem com carinho, moram conosco e fazem parte da minha família», afirma Ingri Cequera.
Nesse bairro famoso pela politização, muitos já criticam o governo por ser complacente com a oligarquia. «Chávez é democrático demais. Está na hora de colocar essa oposição para correr. Os militares hoje estão com o povo e a oligarquia deve aceitar a vontade da maioria», reclama Elói Rangel, 45 anos. «O povo já garantiu o retorno de Chávez no golpe e agora dará nova surra nos ricos. As TVs falam em democracia, mas os ricos são fascistas e devem ir embora para Miami», afirma Ernesto Coronel, 47 anos. Adunai Leon, 34 anos, ativo militante bolivariano, não acredita que a oligarquia e os EUA acatarão o resultado do referendo. «Caminhamos para o confronto armado e o 23 de janeiro está se preparando para esse dia».
ENCONTRO SINDICAL
O entusiasmo com a revolução bolivariana também é crescente no sindicalismo venezuelano. No luxuoso auditório da Universidade Bolivariana, lideranças sindicais do setor público elucidam para as delegações estrangeiras o que está em jogo na Venezuela. Durante nove décadas, os vultuosos recursos da exportação do petróleo, principal riqueza do país, foram apropriados por uma minoria parasitária e rentista e serviram unicamente aos interesses dos EUA. Hoje, esse dinheiro é aplicado em programas sociais que beneficiam milhões. A defesa da soberania e da distribuição da riqueza atiçou o ódio da oligarquia e do império.
Durante décadas, a democracia venezuelana foi de fachada, num bipartidarismo que repartia o poder entre a oligarquia e corrompia a cúpula sindical do país. Hoje, a democracia bolivariana estimula a participação popular. Através de inúmeros mecanismos da Constituição, os trabalhadores se tornaram protagonistas na definição dos rumos da nação. Nos últimos seis anos, a país vive uma verdadeira «revolução sindical». A Central dos Trabalhadores da Venezuela, patronal e corrupta, está totalmente desmoralizada; centenas de sindicatos já se desfiliaram; e a foto de Carlos Ortega, milionário presidente da CTV, está estampada pela cidade com a legenda «procura-se» por sua ativa participação no golpe fascista de abril de 2002.
A União Nacional dos Trabalhadores (UNT), nova central nascida no ano passado em decorrência dessa ascensão popular, já conta com mais de 600 entidades filiadas. O grosso do setor produtivo, incluindo os sindicatos de petroleiros, já aderiu à jovem central. Ela agrega todas as forças engajadas na revolução venezuelana. Sua direção tem 21 coordenadores nacionais – um terço de militantes chavistas, um terço de sindicalistas que romperam com a CTV e outro terço de lideranças independentes de variadas correntes – socialistas, autonomistas, trotskistas. Uma terceira central, a CUTV, menos representativa e sob hegemonia do Partido Comunista da Venezuela, já aprovou a fusão com a UNT ainda nesse ano.
«Não estamos dispostos a perder o que conquistamos nestes seis anos. Faremos de tudo para defender os avanços sociais. Em assembléias nessa semana, os petroleiros de todo o país decidiram que não enviarão uma gota de petróleo para os EUA caso o governo Bush insista em sabotar a nossa revolução e não acate a vitória do nosso referendo. Ele que não meta mais o nariz em nosso país porque senão vai faltar petróleo nos EUA. Essa medida drástica não é contra o povo norte-americano, mas sim contra o governo terrorista, assassino, irresponsável e imperialista deste país», anunciou Franklin Rondon, coordenador nacional da UNT e subsecretário da social-cristã Confederação Latino-Americana de Trabalhadores (CLAT).
O anúncio foi ovacionado pelos estrangeiros. Roger Touissant, presidente do Sindicato dos Metroviários de Nova Iorque, elogiou a luta dos venezuelanos e disse que «quem move o mundo está disposto a mudar o mundo». Arturo Griffitas, panamenho radicado nos EUA e presidente da União dos Trabalhadores em Serviços (SEIU), maior sindicato do império com 1,7 milhão na base, prometeu pressionar a AFL-CIO a exigir o fim da ingerência do governo Bush. Benedito Barbosa, diretor do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, defendeu «a união dos venezuelanos e brasileiros contra Bush». E Gilson Reis, membro da executiva nacional da CUT, arrancou gargalhadas ao propor «a criação do Centro Chávez para fiscalizar as eleições nos EUA, onde o Bush costuma cometer fraudes». A proposta foi aprovada por unanimidade.
UNIVERSIDADE BOLIVARIANA
O prédio em que ocorreu essa animada reunião sindical é emblemático dos novos tempos vividos pelo país. Ele foi sede administrativa do departamento de gás da poderosa estatal do petróleo, a PDVSA, que durante décadas funcionou como um «Estado dentro do Estado», sem qualquer controle da sociedade. Nos estertores do locaute petroleiro, em fevereiro de 2003, milhares de pessoas ocuparam a luxuosa sede Los Chaguramos, acarpetada e de mármore. Num ato carregado de simbologia, que mexeu com o imaginário popular, Chávez decretou a doação em comodato do prédio para a criação da Universidade Bolivariana.
Segundo a assessora de imprensa Yelitaz Medina, a universidade já conta com 4.230 estudantes e possui três programas de formação aprovados pelo Conselho Nacional Universitário: comunicação social, gestão ambiental e gestão do desenvolvimento local. «O critério básico para o jovem ingressar na Universidade Bolivariana é que ele tenha sido excluído de uma faculdade privada por não ter conseguido pagar a mensalidade ou que a sua permanência nas poucas faculdades públicas existentes tenha sido inviabilizada por problemas financeiros no pagamento do vestibular ou na compra de materiais», explica.
Recebida com aplausos, Maria Egilda Castellano, reitora da universidade, relata que já funcionam quatro unidades no país, com 9.560 jovens, e que a meta é descentralizar essa experiência inovadora de ensino. «A Universidade Bolivariana supera a educação tecnicista e individualista; dá formação ética, política e cultural, numa visão humanista, engajada nas transformações estruturais. Ela estimula o contato direto do jovem com a sua comunidade para que ele ajude com seu talento a mudar o país. Nosso objetivo é acabar com o privilégio dos ricos no acesso à faculdade». A reunião termina em clima de festa e os sindicalistas de vários países, extasiados, saem mais convencidos da urgência da solidariedade ao povo venezuelano!
Reencontro o risonho e jovial Arturo Griffitas num jantar das delegações estrangeiras em comemoração à vitória arrasadora do no. Acompanhado do ator Danny Glover, ele não pára de falar e gesticular. «Virei um bolivariano». O jornalista Breno Altman, que teve importante papel na articulação do apoio do PT ao governo Chávez, e o escritor Gilberto Maringoni, autor do melhor livro publicado no Brasil sobre o tema, também não escondem a alegria. Militantes da CUT, do MST e do Comitê Paulista de Solidariedade estão eufóricos. O franco-venezuelano Maximilien Arvelaiz, assessor de Chávez, também está presente. A noitada termina numa animada e desafinada roda de samba brasileiro!
* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e organizador do livro «Para entender e combater a Alca» (Editora Anita Garibaldi).