I O Século XX viu desmoronar muitos dos engenhos criados pelas forças sociais do trabalho e pela esquerda. O alvissareiro empreendimento soviético iniciado em 1917, as lutas de libertação nacional em tantas partes do Terceiro Mundo, a expansão do «bloco socialista» no Leste Europeu, a corajosa e rebelde Revolução Sandinista, para lembrar alguns exemplos fortes, […]
I
O Século XX viu desmoronar muitos dos engenhos criados pelas forças sociais do trabalho e pela esquerda. O alvissareiro empreendimento soviético iniciado em 1917, as lutas de libertação nacional em tantas partes do Terceiro Mundo, a expansão do «bloco socialista» no Leste Europeu, a corajosa e rebelde Revolução Sandinista, para lembrar alguns exemplos fortes, cujo desmoronamento ou derrota tristemente presenciamos nas últimas décadas do Século que se foi. Se ainda há a heróica resistência cubana, o prolongamento bastante alterado (e mesmo adulterado) do empreendimento revolucionário chinês, quase tudo que de fundamental se intentou na batalha pela demolição do capital, foi de algum modo derrotado ou reposto pelo domínio do capital. O mesmo se deu em relação à organização sócio-política de classe, aos partidos que propugnavam pela representação dos trabalhadores. Creio que podemos afirmar, hoje, que a forma partido, erigida tanto pela variante social-democrática, quanto pela vertente dos partidos comunistas tradicionais, ambas exauriram-se ao longo deste (curto) Século XX.
O primeiro, porque aceitou, num processo por certo complexo, que aqui não podemos recuperar, o compromisso de ganhos imediatos, reais, de melhoria das condições de trabalho e vida, em troca do abandono cabal de qualquer esforço visando à construção de um empreendimento societal socialista, de novo tipo, que colocasse em cheque a lógica do capital. Restrita a alguns países do Norte (tendo o Sul como suporte de exploração e sucção fundamental), o compromisso socialdemocrática estruturado entre o capital, o trabalho e o estado, permitia, por um lado, que o movimento operário e sindical de tipo socialdemocrático conquistasse direitos sociais em troca da negação de uma ação socialista efetiva. Desse modo, os interesses do capital garantiam seu futuro, enquanto o mundo do trabalho melhorava, de modo contingente, o seu presente. A intensificação das lutas sociais dos anos 60 desmontaram a institucionalização dessa variante de representação política do trabalho; conforme nos recordou Alain Bihr, os trabalhadores cansaram-se de perder sua vida para ganhá-la. (Bihr, Da Grande Noite à Alternativa, Boitempo).
Os partidos comunistas também sentiram fortemente as conseqüências das derrotas do Século XX. Com o fim da União Soviética deu-se, entretanto, um movimento diverso: por um lado, um forte processo de socialdemocratização dos PCs (caso do PCI, que majoritariamente se tornou PDS, Partido Democrático de Esquerda); outros PCs simplesmente desapareceram e alguns, como o PCP (de Portugal) e PCF (França), procuram resistir. Outros ainda- e estes estão dentre os exemplos mais interessantes – reestruturaram-se, procurando refundar o movimento de esquerda. É o caso do Partido da Refundação Comunista, PRC, na Itália, que aglutinou as forças de esquerda oriundas do antigo PCI.
A vigorosa tese leniniana, estampada em Que fazer? (que conforme lembrou Lenin, alguns anos após a publicação do livro, era tão somente um compêndio de tática iskrista, nem mais, nem menos), foi transplantada do solo russo, onde ela tinha forte sentido (lembremos do czarismo autocrático e ditatorial russo) para assumir validade universal e, a partir de então, foi crescentemente dogmatizada pelo stalinização do PC soviético e também, com suas diferenças, em grande parte dos PCs que seguiam aquela orientação. O partido de vanguarda, centralista e democrático em seu desenho e propositura iniciais, expressão típica da particularidade da autocracia czarista russa, representante efetivo daquela realidade do movimento operário, impulsionado pelos núcleos de operários e intelectuais revolucionários, pouco a pouco, depois de 1924, com a morte de Lenin, se transformava no partido de cúpula, centralista, burocrático, eliminador das diferenças pela prática bárbara e brutal dos expurgos, desconsiderando cada vez mais os interesses reais das forças sociais do trabalho.
Fracassadas as duas maiores experiências de partido, a socialdemocrática e a dos partidos comunistas tradicionais de linhagem stalinista ou neostalinista, encontramo-nos, hoje, no início deste Século XXI, com um questão central, crucial: como estruturar um partido que possa ser contemporâneo aos desafios de nosso tempo? Que possa superar o enorme desgaste em que se encontram esses organismos de representação política? Que possa ser, ao mesmo tempo, renovado e radical? Que seja capaz de recuperar os valores mais essenciais do socialismo, capaz de resgatar o valor central da humanidade social (Marx), que esteja a altura dos enormes desafios do nosso tempo, onde a destrutividade ambiental e da natureza, a degradação do trabalho, a superfluidade das mercadorias, o fetichismo das coisas, o estranhamento das subjetividades, o predomínio quase inquestionável da mercadoria/dinheiro e sua financeirização, para não falar na barbárie belicista imposta pelos EUA, seu império imperialista e seus seguidores, hoje dominantes, possam definitivamente perecer.
Que seja, ao mesmo tempo, um movimento social e político, anti-institucional, contrário ao predomínio da lógica parlamentar, calibrada pelo calendário eleitoral e que, ao contrário, tenha forte impulsão tendo como base as forças hegemônicas alternativas do trabalho, organizado pela base, capaz de aglutinar também aquele/as que hoje estão expulsos do trabalho, vivenciando o flagelo do desemprego, forças sociais que se encontram em grande medida ausentes de representação política. Que recuse a política da ordem e também a anti-política, o que somente pode se efetivar através do exercício da política radical. Que consiga ainda combinar forte presença de base, sem sucumbir ao vanguardismo e às formas superadas de centralismo. Trata-se, portanto, de reconstruir e redesenhar um novo partido (um partido político distinto, para lembrar as indicações de Marx, mas na contextualidade do nosso tempo), que somente poderá encontrar força, vitalidade, impulsão, densidade, se estiver fortemente ancorado nas forças sociais do trabalho, em seu sentido ampliado, com sua nova polissemia, seu caráter multiforme, recusando a «linha de menor resistência» (Mészáros, Para Além do Capital, Boitempo), dadas pelo atalho institucionalista, marcadamente eleitoral, subordinadamente parlamentar, que acaba, mais cedo ou mais tarde por transformar-se num partido da ordem.
II
Esse caminho alternativo não tem sido fácil. O Partido dos Trabalhadores, o mais forte partido de esquerda do Brasil e da América Latina, que se tornou referência internacional, não foi capaz de consolidar esse caminha alternativo. Com o enorme processo de desertificação social do país, resultado das transformações ocorridas ao longo dos anos 90 (neoliberalismo, financeirização da economia, reestruturação produtiva do capital, desregulamentação, informalidade e precarização do trabalho, privatização da res publica etc.), o PT também acabou por converter-se num partido da ordem, exauriu-se enquanto partido de esquerda, capaz de transformar a ordem societal, para se qualificar enquanto gestor dos interesses dominantes no país. O PT converteu-se num partido que sonha em humanizar o nosso capitalismo, combinando uma política de privatização dos fundos públicos, atendendo tanto aos interesses do sindicalismo de negócios quanto especialmente aqueles presentes no sistema financeiro nacional e especialmente internacional que efetivamente dominam.
Este quadro nos leva a buscar uma nova alternativa político-partidária, capaz de preencher o enorme vazio político e ideológico socialista, aberto depois do transformismo do PT, cujo núcleo dominante é responsável pela condução do governo Lula. O sucesso dessa empreitada, entretanto, «está em buscar laços profundos com os movimentos sociais, com a nova polissemia que caracteriza o mundo do trabalho, combinando um forte pluralismo socialista, capaz ainda de ser simultaneamente renovado e radical, respondendo aos desafios que o século XXI nos impõe». (Conforme nosso depoimento em Crítica Social, n. 4, 2004, RJ)
Trata-se, portanto, de superar o centralismo e o institucionalismo através da pujança e força das lutas sociais de classe, incorporando também decisivamente e de modo transversal, as dimensões de gênero, etnia, a luta ecológica etc, fundamentais todas elas quando se pensa no presente e futuro do gênero humano, articulando-as decisivamente à luta contra a lógica do capital.
Sua força central – e nunca única – se encontra no trabalho, elemento estruturante da vida societal e que deve ser compreendido em seu sentido abrangente e multiforme. E esse empreendimento é imprescindível, de modo que se possa definitivamente eliminar o trabalho abstrato, fetichizado e estranhado, vigente no mundo do capital e que dever ser completamente eliminado da sociedade humana, resgatando o sentido do trabalho como atividade vital ( Marx), criadora e constitutiva do gênero humano.
Um organismo que auxilie na recuperação do sentido de pertencimento de classe que os partidos da ordem estão impossibilitados de representar. Capaz de recuperar o sentido estruturante do trabalho humano e societal, contra o sentido desestruturante do trabalho assalariado sob o capital. Esse é um desafio crucial do nosso século, empreendimento para o qual as formas envelhecidas de partido estão impossibilitados de realizar. O que nos coloca um novo desafio, dentre tantos existentes: como auxiliar na organicidade dos diversos movimentos sociais, na heterogeneidade das forças sociais do trabalho, qualificando-as organicamente para os embates com o capital na era de sua mundialização e quando também estamos presenciando a mundialização das lutas sociais do trabalho. Capaz de articular de modo íntimo luta social e luta política, sem que uma se distancie da outra.
Estamos num momento de novos experimentos que devem, entretanto, tomar o passado recente como matéria de reflexão, balanço e análise. Tudo isso nos obriga a buscar alternativas, novos caminhos que apontem para uma nova sociedade, aprendendo com as lutas passadas e refletindo sobre as mais recentes. Sabemos, entretanto, que as respostas exigidas são radicais. Do contrário, vamos repetir as tragédias anteriores. A forma partido, quer em sua variante social-democrata, quer aquela assumida pelos partidos comunistas tradicionais, está falida. Como, então, estruturar um partido político distinto, de classe, socialista, anticapitalista, que expresse ao mesmo tempo uma forte participação de base, capaz de aglutinar e empolgar as forças sociais que hoje se encontram à margem representação política e que recuse fortemente a prevalência da ação institucional, parlamentar, sustentando-se na política radical?
Esse é, no Brasil de nossos dias, o desafio maior do recém-criado Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que pretende auxiliar na refundação e reorganização da esquerda brasileira, depois do fracasso do PT. Projeto este que, por certo, precisa do apoio de várias forças de esquerda, hoje ainda no PT, bem como setores que se encontram fora das estruturas partidárias vigentes, bem como aqueles que se encontram em outros grupamentos e partidos de esquerda que abraçam a idéia de um organismo político socialista e radical, organizado democraticamente pela base, anti-capitalista e capaz de conviver com a pluralidade das forças socialistas e de esquerda, que nos ajude a reconquistar o sentido de humanidade, liberdade, igualdade e emancipação presentes no ideário socialista. E esse é, hoje, o nosso novo desafio assumido pelo PSOL. Que poderá nos ajudar a enfrentar outro desafio monumental: a construção de uma alternativa societal socialista no limiar do século XXI. Talvez a única alternativa de salvar a humanidade que já vivencia a barbárie.
Alguns dirão: la vêm as cinzas… Mas nós responderemos com as belas palavras nosso poeta Mário Quintana: «que importam as cinzas, se a chama foi bela e alta».
* Ricardo Antunes é Professor Titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (UNICAMP) e autor, dentre outros, de A Desertificação Neoliberal no Brasil (Autores Associados), Os Sentidos do Trabalho (Boitempo, 7ª edição) e Adeus ao Trabalho? (Cortez/Unicamp, 8ª edição).