Em vinte páginas publicadas originalmente em janeiro de 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Alexandre Kojève realizou uma síntese e uma reinterpretação geniais do capítulo IV da Fenomenologia do Espírito, de Hegel. O capítulo se chama «Autonomia e dependência da consciência-de-si: dominação e sujeição», e é nele que Hegel desenvolve a dialética do senhor […]
Em vinte páginas publicadas originalmente em janeiro de 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Alexandre Kojève realizou uma síntese e uma reinterpretação geniais do capítulo IV da Fenomenologia do Espírito, de Hegel. O capítulo se chama «Autonomia e dependência da consciência-de-si: dominação e sujeição», e é nele que Hegel desenvolve a dialética do senhor e do escravo.
O que diferencia o desejo animal e o desejo humano, ele diz ali, é que o primeiro se dirige a objetos reais, «positivos», que existem na natureza, enquanto o segundo – o desejo especificamente humano – se dirige a um outro desejo: «A história humana é a história dos desejos desejados. (…) O Ser humano só se pode constituir se pelo menos dois desejos se confrontam.»
O confronto, por sua vez, tem de ser (ou, pelo menos, tornar-se) assimétrico. Pois, se ambos os contendores lutassem até a morte, a História não poderia existir. Torna-se escravo aquele que coloca sua vida acima de sua liberdade, e por isso, em algum momento, pára de lutar. Torna-se senhor aquele que coloca sua liberdade acima de sua vida, e por isso continua lutando. Instaura-se assim um processo histórico muito complexo, que Hegel descreve de forma longa e brilhante, com um final surpreendente. Marx será herdeiro direto dessa construção ideal, reinterpretando-a com novos conteúdos.
Ao longo da História real, o estabelecimento e a reafirmação de relações de senhorio e servidão passaram normalmente pela guerra, forma extrema de impor a vontade de um à vontade do outro. Na segunda metade do século XX, depois de uma conflagração que devastou o coração do Ocidente, a Rússia, o Norte da África, o Médio e o Extremo Orientes, com a terrível experiência do extermínio planejado e o advento da era atômica, chegamos a pensar que a guerra se tornara obsoleta. Estávamos errados. O que a inibiu, nos anos seguintes, foi o equilíbrio de poder entre duas superpotências capazes de se aniquilar. Superado esse equilíbrio, a potência restante voltou a torná-la um instrumento banal. Com o fim da Guerra Fria, a imposição de uma nova ordem ao mundo passou a exigir guerras regionais. A principal delas está em curso no Iraque, tendo como motivações mais importantes aquelas ligadas à geopolítica do petróleo.
Muitos de nós pensamos que essa guerra havia sido resolvida com a queda de Bagdá. Teriam ficado comprovadas a eficácia decisiva de uma nova geração de armamentos e a superioridade da técnica. Para reforçar essa impressão, a topografia do país estava a favor do invasor: Lawrence da Arábia já havia percebido, em 1918, que uma guerra no deserto mimetiza uma guerra no mar, na qual a superioridade aérea, cada vez mais, é o elemento decisivo.
Estávamos errados, de novo. O acontecimento mais relevante no mundo atual é a resistência do Iraque e a surpreendente constatação de que o povo iraquiano vencerá. Pois o tempo, agora, está a seu favor: para o lado norte-americano, é uma guerra de altíssimo custo, enquanto, para o iraquiano, é de baixíssimo custo; são muito maiores as capacidades iraquianas de aceitar baixas e repor combatentes; em becos e ruas, a superioridade do armamento perde para a qualidade da infantaria, a mobilidade, o domínio do terreno, a surpresa e, principalmente, o apoio popular. Por trás de tudo isso está o fator fundamental: os norte-americanos destruíram a infra-estrutura física e as instituições do Estado invadido, incluindo aí suas forças armadas, mas não foram capazes de quebrar a vontade dos iraquianos que optaram por resistir. Hoje sabemos que, ao contrário, a vontade dos Estados Unidos será quebrada primeiro. Por isso, de uma forma ou de outra, em prazo menor ou maior, o Iraque vencerá.
A guerra, pois, continua a ser um confronto entre homens, decidido pela vontade dos homens. Se o ocupante não consegue obter suficiente base política na sociedade local, a ocupação fracassará, independentemente da superioridade tecnológica que possa exibir. Retornemos a Hegel: quem segue lutando, escravo não será.
Retornemos, porém, muito mais: há 2.500 anos, Sun Tzu dizia que a guerra perfeita é aquela que não chega a ser travada. O estrategista perfeito é o que consegue quebrar a vontade do outro sem ter de arcar com os custos e os riscos de uma guerra real. Sob esse ponto de vista, a guerra patrocinada por Bush no Iraque, em busca de bons negócios, é escandalosamente imperfeita: dispendiosa, suja, cínica, aberta, ilegítima, infindável, insustentável.
A guerra perfeita da potência dominante, nos últimos anos, foi travada contra o Brasil. Pois aqui, sim, ela quebrou a vontade do outro – a nossa vontade – sem ter de arcar com os custos de uma guerra real. Conseguiu tecer a ampla base política interna que legitima uma ocupação que, por isso, pode permanecer virtual. Se alguém tinha dúvidas disso, deve tê-las perdido quando ouviu a declaração lapidar de Lula em recente reunião com banqueiros de Nova York, logo após a aprovação do salário mínimo de R$ 260,00: «O Brasil é um bom negócio.»
Lula foi recatado. Poderia ter dito: o Brasil continua a ser um bom negócio. Pois isso sempre foi. Foi excelente o negócio do açúcar, que nos séculos XVI e XVII, baseado aqui, formou o moderno mercado mundial e encheu as burras dos banqueiros europeus. Foi magnífico o negócio do ouro na segunda metade do século XVIII; graças a ele, a Inglaterra – que nunca teve minas de ouro – constituiu suas enormes reservas e criou o primeiro padrão monetário mundial (o padrão libra-ouro) no século XIX, símbolo e suporte de sua hegemonia. A partir de 1840, até bem entrado o século XX, foi maravilhoso o negócio do café, estimulante de baixo custo e fácil distribuição, ofertado à classe trabalhadora da Europa e dos Estados Unidos, que precisava ser disciplinada para o trabalho fabril. Foi sempre estupendo o negócio do endividamento perpétuo dessa sociedade que, preferindo a sobrevivência medíocre – na condição de «bom negócio» para os outros – à luta pela autonomia e a liberdade, escolheu o destino de escravo, a que Hegel se referia, duzentos anos atrás.
A guerra perfeita, repito, foi a guerra que nos derrotou. O presidente Lula é a prova.
Junho de 2004
* César Benjamin é autor de A Opção Brasileira (Contraponto, 1998, nona edição) e Bom Combate (Contraponto, 2004). Escreve uma análise mensal de economia e política econômica na página www.outrobrasil.net.