O Brasil é hoje um país vulnerável, «pendurado na brocha». Para manter, aos trancos e barrancos, o frágil funcionamento da economia, ele depende do ingresso anual de quase US$ 53 bilhões do mercado externo. Essa situação de dependência, uma marca da história nacional, chegou às raias do absurdo durante o triste reinado de FHC. Apesar […]
O Brasil é hoje um país vulnerável, «pendurado na brocha». Para manter, aos trancos e barrancos, o frágil funcionamento da economia, ele depende do ingresso anual de quase US$ 53 bilhões do mercado externo. Essa situação de dependência, uma marca da história nacional, chegou às raias do absurdo durante o triste reinado de FHC. Apesar da conversa fiada sobre austeridade fiscal e da entrega criminosa de boa parte do patrimônio público, via privatizações espúrias, o seu governo tornou o país ainda mais capenga. Na hora em que FHC reaparece das sombras, encabeçando uma hidrófoba oposição neoliberal, vale repisar que o seu reinado transformou o país num grande cassino. Ele escancarou de vez a orgia financeira no Brasil!
Em dezembro de 1994, pouco antes da sua primeira posse, a dívida líquida do setor público (que inclui as dívidas interna e externa, menos reservas internacionais) era de R$ 153,2 bilhões, o equivalente a 28% de todas as riquezas produzidas no país. Já no final do seu segundo mandato, em dezembro de 2002, havia saltado para R$ 881,1 bilhões – 55,5% do PIB. O grosso do esforço produtivo nacional, que deveria servir para alavancar os investimentos públicos e gerar milhões de empregos, foi desviado para o pagamento dos juros e amortizações destas ilegítimas dívidas. A «livre» circulação de capitais, um mandamento sagrado do credo neoliberal, foi usada para alimentar esta perversa especulação financeira.
Como ironiza Paulo Nogueira Batista Jr., o sinistro governo FHC deveria «figurar nos estudos de caso de experiências econômicas extravagantes. A carga tributária bruta aumentou cerca de 10 pontos percentuais do PIB em apenas oito anos. Ao mesmo tempo, foram privatizadas muitas empresas públicas, algumas das melhores e mais importantes… Já a combinação desastrosa de sobrevalorização cambial e abertura imprudente da economia, nos campos comercial e financeiro, gerou desequilíbrios enormes na balança de pagamentos e resultou em rápido crescimento das obrigações internacionais do Brasil. A economia ficou à mercê das turbulências financeiras mundiais, tornando-se vítima preferencial de choques externos» [1].
CANTO DA SEREIA
É bem verdade que a burguesia tupiniquim nunca foi muito afeita à defesa da soberania nacional. Desde longa data, é crônico o seu servilismo ao capital estrangeiro – num primeiro momento, ao imperialismo inglês; e, na seqüência, ao império estadunidense. É certo também que sempre existiram contradições em seu interior, com frações burguesas defendo certa autonomia nacional e outras, a total subserviência. Essa disputa marcou toda a trajetória republicana. Foi o pano de fundo da chamada «revolução de 30», do suicídio de Getúlio Vargas, do golpe militar 64, entre outros episódios dramáticos da história brasileira.
Uma mudança de qualidade, porém, ocorreu na fase recente. A parcela majoritária da grande burguesia nacional, seduzida pelo canto da sereia da «globalização neoliberal», resolveu apostar as fichas no cassino financeiro mundial. Desde a crise econômica de 1982, um setor dolarizou parte das suas riquezas. Hoje, a maior parte tem recursos em dólares, geridos por «bancos» nos paraísos fiscais. Mas é a partir dos anos 90 que esta tendência se consolida. Primeiro com Collor de Mello que, em setembro de 1992, pouco antes do impeachment, liberou o fluxo de capitais; na seqüência, num grau mais radicalizado, com o tucano FHC.
Como demonstra um acalentado estudo, dos economistas Marcos Antonio Cintra e Daniela Prates, «foi a esse padrão de fluxos de capitais voláteis, predominante nos mercados financeiros globalizados, sujeito às turbulências no mercado de ativos e de câmbio, que as elites dirigentes engataram a economia brasileira. Desde o início, o governo de FHC tomou o partido da internacionalização e apostou que a oportunidade histórica do país estaria na adesão à onda de reformas liberalizantes… Em 2000, na gestão do presidente do BC, Armínio Fraga, o processo de liberalização e desregulamentação foi praticamente finalizado» [2].
Para eles, o Plano Real foi decisivo neste processo de financeirização. Não foi uma invenção original de FHC, mas sim produto dos mercados globalizados. Os capitais fluíram do exterior porque «o país oferecia altas taxas de juros e a possibilidade de se adquirir ativos subvalorizados, sobretudo com a perspectiva de ampliação da privatização». Para garantir segurança ao capital externo, FHC impôs profundas mudanças institucionais, reduzindo as barreiras até então existentes às aplicações estrangeiras no mercado doméstico e facilitando a evasão de capitais. Eles citam, por exemplo, a resolução nº 2.770 do Conselho Monetário Nacional, de agosto de 2000, revogando 237 normas que disciplinavam operações financeiras no exterior.
SACANAGEM CAMBIAL
Este processo desenfreado de libertinagem financeira contou com a inestimável ajuda do Banco Central, como comprova minuciosa reportagem do jornalista Raimundo Pereira [3]. Com base nas acusações das procuradoras da República Valquíria Nunes e Raquel Branquinho, ele mostra que, através de circulares, cartas e até de uma cartilha, o BC revogou regras de controle cambial fixadas pela lei 4.131, baixada em 1962. Tamanha ilegalidade motivou um processo, que corre na Justiça Federal desde dezembro passado, solicitando a condenação por crime de improbidade administrativa dos ex-presidentes do BC, Gustavo Loyola e Gustavo Franco, e de mais 13 altos dirigentes do sistema financeiro.
Segundo a denúncia, em novembro de 1993, quando FHC ainda era ministro da Fazenda, o Banco Central publicou uma cartilha intitulada «O regime cambial brasileiro: evolução recente e perspectivas». No ponto de número dez, o BC dava dicas de como fugir das restrições existentes à evasão de divisa. «Se um agente quiser fazer uma remessa para o exterior, basta que deposite cruzeiros reais na conta de uma instituição financeira não-residente e deixe que ela faça o resto». A orientação do Banco Central foi tão escancarada que o próprio mercado passou a se referir a este documento como Cartilha da Sacanagem Cambial.
Além disso, esta orgia financeira pode ainda se aproveitar da falta de mecanismos eficazes de fiscalização do Estado. Pesquisa do analista Gerson Luiz Romantini mostra que dos 18.610 comunicados de operações financeiras suspeitas, apenas 666 foram convertidos em inquéritos pela equipe de apenas 18 funcionários do Conselho de Controle de Atividades Financeiras do Banco Central. Destes, apenas 149 pessoas foram indiciadas; mas ninguém foi preso até hoje e nenhum centavo da evasão foi recuperado. Desta forma, a liberalização patrocinada pelo governo FHC inclusive estimulou a lavagem de dinheiro e a sonegação [4].
IMPASSES ATUAIS
Lula foi eleito exatamente para alterar este quadro tão deplorável. Superando os preconceitos arraigados, a sabotagem econômica e o terrorismo político, a sociedade brasileira explicitou que desejava profundas mudanças no Brasil. A estagnação econômica, geradora de desemprego, queda de renda e ausência de políticas sociais, foi repudiada nas urnas. O neoliberalismo, como expressão da hegemonia do capital financeiro, foi derrotado eleitoralmente. Até uma parcela da burguesia, agora em atrito com a oligarquia rentista, aderiu à candidatura de esquerda do operário Luís Inácio Lula da Silva.
Diante da perversa herança do neoliberalismo, poucos acreditavam que seria possível desmontar de uma única vez, de forma abrupta, esta destrutiva bomba do capital financeiro. Mas era preciso sinalizar para as mudanças, iniciar a transição na política macroeconômica. Até agora, porém, o tripé neoliberal se mantém intacto e, inclusive, foi agravado: a taxa de juro real prossegue nas alturas; o superávit fiscal foi elevado; e o livre fluxo de capitais continua a gerar calafrio na sociedade e alegria aos banqueiros. Nem mesmo a desregulamentação financeira de FHC foi revertida. Prova disso é a circular nº 3.187 do BC, de abril de 2003, que permite remessas de capital ao exterior através da sinuosa Transferência Eletrônica Disponível.
A área econômica do governo Lula, encabeçada por Antonio Palocci e lotada de serviçais da era FHC, faz de tudo para agradar o «deus-mercado». Por um lado, diz que não há alternativas; por outro, aposta numa incerta liquidez internacional. Com isso, envereda cada vez mais na arapuca neoliberal. Mas, como alerta Paulo Nogueira Batista Jr., «este modelo possuí mecanismos de autopreservação, pois cria dependências que tornam arriscados os ‘desvios de conduta’ na área econômico- financeira. Acontece que as políticas que os mercados financeiros e seus porta-vozes estigmatizam como ‘desvios de conduta’ são justamente aquelas que poderiam conduzir a uma retomada do desenvolvimento e à geração de empregos» [5].
Como recorda o professor Fernando Cardim de Carvalho, ainda na fase eleitoral, o então candidato Lula foi forçado a assumir compromissos com o mercado. Na véspera do pleito, a taxa de cambio atingiu R$ 3,98 por US$ 1,00, a inflação disparou e o chamado «risco Brasil» bateu recordes. FHC alimentou o clima de alarmismo para impor essa blindagem. Mas esta rendição, que poderia ser transitória, acabou virando permanente com a ilusão de se conquistar a «credibilidade» do mercado financeiro.
Para ele, o governo Lula faz um jogo de alto risco ao colocar todas as fichas na conquista desta credibilidade. Os «jogadores do mercado» não são ingênuos; sua confiança exige medidas concretas e, principalmente, irreversíveis.
«Enquanto a irreversibilidade das escolhas político-econômicas de Lula não for estabelecida, seja por uma autocrítica pública do presidente, renegando suas idéias anteriores (e as do PT), seja pela implementação de um conjunto amplo de reformas institucionais, como a concessão da independência do Banco Central, que impeçam o governo de voltar atrás em seus compromissos, a credibilidade será sempre limitada… Com a liberdade concedida a capitais financeiros de entrada e saída no país, a economia estará sempre no fio da navalha… Com tal ameaça pairando sobre a economia, não é de se esperar nenhum movimento sustentado de recuperação do crescimento perdido há tantos anos» [6].
Para ele, o governo Lula precisa urgentemente romper com este «círculo de ferro», adotando o controle do fluxo de capital. «O futuro não está perdido nem o governo Lula está condenado ao fracasso. O dano já causado pela infeliz decisão de prosseguir, e radicalizar, as políticas de FHC é grande, mas ainda pode ser contido. A escolha do governo é clara: mudar os seus caminhos enquanto é tempo ou fazê-lo forçado pela crise econômica e política que resultará quando se esgotar a paciência de sua base política».
NOTAS
1- Paulo Nogueira Batista Jr. «Palocci em Comandatuba». Agência Carta Maior, 21/04/04.
2- Marcos Cintra e Daniela Prates. «Fluxos de capitais internacionais para o Brasil nos anos 90».
3- Raimundo Rodrigues Pereira. «Banco Central dos fora-da-lei». Planeta Porto Alegre, 04/02/04.
4- Nelson Breve. «Debate sobre controle de capitais chega ao Congresso«. Carta Maior, 16/03/04.
5- Paulo Nogueira Batista Jr. «A busca da agenda perdida». Carta Maior, 09/03/04.
6- Fernando Cardim de Carvalho. «Perdas e danos no jogo de erros da política econômica».
* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e organizador do livro «Para entender e combater a Alca» (Editora Anita Garibaldi).