O governo Lula é prisioneiro de impasses profundos, dos quais não se libertará. Suas ações e omissões têm agravado, em curto período de tempo, todos os nossos dilemas. Caminha para um fracasso de grandes dimensões.
Há uma tragédia em curso no Brasil, e ela, por enquanto, nos confunde e nos paralisa. Pois a política – o nosso instrumento da mudança – foi despolitizada, reduzida a doses cavalares de marketing e a um conjunto de pequenos arranjos, muitos dos quais bastante suspeitos, tudo a serviço da conquista e da preservação de posições de poder. Nada mais há de libertário nela. Nenhum impulso de superação do que existe. Nenhuma ligação com fins e valores. Passada a eleição, discute-se agora se Marta ganhará a embaixada em Paris, quem «se cacifou» para a próxima disputa, qual dos gaúchos vai perder vaga no ministério, como encontrar cargos suficientes para acomodar tanta gente e coisas assim tão transcendentais, enquanto Lula diz platitudes, passeia com sua cadela, vai ao cineminha do palácio e aguarda a chegada do novo avião. Na economia, tudo vai bem, pois os bancos e o agronegócio vão bem. O povo tenta sobreviver.
Precisaremos reinventar a política. Os partidos operários modernizaram a política européia ainda no século XIX. Ampliaram os limites das hesitantes democracias de então, forçando os conservadores a se adaptar. No Brasil, em pleno século XXI, o PT no poder rebaixou os ideais republicanos – já não digo socialistas – ao nível de um jogo circense que instrumentaliza a nossa democracia, igualmente hesitante, para apequená-la. A política confirma-se como um espaço de competição entre grupos de profissionais que, ao buscarem seus interesses, concorrendo entre si, acabam por construir uma situação de eterno equilíbrio flutuante, por meio da manipulação periódica dos desejos de eleitores-consumidores. É, como se vê, uma variante do mercado. Não há mais projetos de sociedade em disputa. Não há espaços para que o povo apareça como protagonista e reivindique para si a construção de seu próprio futuro. Discute-se, no máximo, quem administra melhor o que aí está.
Nesse contexto, os políticos – os do PT e os outros – esforçam-se por adaptar-se ao que a sociedade é, ou parece ser, conforme lhes informam as onipresentes e minuciosas pesquisas de opinião. Não aceitam correr o risco de pensar no que ela não é, nem parece ser, mas pode vir a ser. São incapazes de despertar qualidades novas que estejam latentes. E ficam iguais. O futuro que resulta do somatório dessas ações da pequena política, dessas sucessivas operações de curto prazo, tendo sempre em vista a próxima eleição, esse futuro – o único admitido pelo jogo institucional atual – é apenas o prolongamento do presente. Não contém o caráter novo de um verdadeiro futuro. Consolida-se assim, pois agora sem oposição, o status quo que tem origem na contra-reforma conservadora da década de 1990. Os porta-vozes da burguesia exultam diante de tanta maturidade.
Tivemos, ao longo da história, muitos tipos de esquerda. Pela primeira vez, temos agora uma esquerda de negócios. Pois, tendo destruído a militância, o que Lula e o PT necessitam cada vez mais – mídia e dinheiro – só a classe dominante pode lhes dar. Pela palavra de suas principais lideranças e pela sua prática, o PT já não esconde sua condição de partido tradicional, integrado política e moralmente à ordem em vigor. Entre perdas e ganhos, firmou posições no espectro da política institucional, cada vez mais divorciada do país real, mas não mais poderá ser o eixo de gravitação de uma proposta transformadora, mesmo reformista, que pretenda ser séria.
Estamos assistindo, pois, ao fim de um ciclo na existência da esquerda brasileira, com o colapso político e moral de sua força hegemônica. Este ciclo acabou porque: (a) a interpretação que o PT tem sobre a crise do nosso país – que seria superada com uma retomada do crescimento econômico – está fundamentalmente errada; (b) o programa liberal e conservador do governo Lula, ao fortalecer as forças do capital contra as forças do trabalho, agrava a velha crise, em vez de abrir um período novo; (c) o tipo de prática que o PT propõe aos seus filiados – integrar-se cada vez mais às instituições do Estado, construindo carreiras políticas individuais – perpetua e aprofunda o impasse da esquerda; (d) a relação do PT com o povo – desmobilizadora e mistificadora – já permite classificá-lo como um partido conservador; (e) permeado por interesses menores de todo tipo, ele não é mais capaz de reformar-se e abandonar esse caminho falso.
Engana-se quem ainda espera que da cartola de Lula surja algo novo. O neoliberalismo do seu governo não é uma política. É uma ideologia. Como todas as outras, não deixa porta de saída. Só produz mais do mesmo, e esse mesmo é pura mesmice. É preciso compreender bem esse ponto, para que não haja ilusões. No imaginário neoliberal, o mercado é o espaço de interação de incontáveis agentes, sem que nenhum deles possa, sozinho ou em grupo, controlar os processos de troca a ponto de impor os seus próprios fins aos demais. Ao governo, nessa visão, cabe cuidar apenas de preservar certas condições macroeconômicas que permitam o mercado operar. Fora do âmbito da empresa individual, essa escola de pensamento é hostil a qualquer idéia de metas, pois a busca de metas democraticamente definidas exige uma intervenção consciente nos processos econômicos e sociais, em nome de um futuro pensado, desejado, imaginado, concertado, e não produzido por aquela cega interação mercantil.
Quando se apresentam como representantes do futuro, os neoliberais nos vendem uma mercadoria que não podem entregar, pois eles mesmos não têm meios de saber a qual futuro se referem. A alocação dos recursos será ótima – eles dizem – se for produzida pelo livre mercado, simplesmente porque o livre mercado produz uma alocação qualquer, desconhecida, considerada ótima por critérios internos à própria teoria que o glorifica. Se essa alocação ótima produzirá bem-estar, não se sabe. Isso, aliás, não tem a menor importância.
Ora, se permanece indefinida a imagem do futuro que se deseja atingir, inexistem pontos de referência que permitam uma avaliação rigorosa dos processos reais. Diante de qualquer dificuldade, o pensamento neoliberal consegue acionar uma saída de emergência com a incessante repetição de que é preciso esperar mais e insistir mais, dobrando a aposta quando necessário, pois – eis aí o verdadeiro problema – «o modelo ainda não foi completamente implantado». Há anos ouvimos isso, aqui e alhures, e não sem razões. Pois, sendo o livre mercado apenas um tipo ideal, incapaz de organizar efetivamente o conjunto da vida social, então, por definição, a implantação do modelo neoliberal está sempre incompleta. Cria-se um discurso que, como os demais discursos ideológicos, externaliza suas dificuldades. Não depende do confronto com uma realidade que lhe seja exterior, já que abriga em si condições suficientes para legitimar-se em qualquer circunstância. Os fracassos o fortalecem, pois ele sempre conta com uma poderosa fuga para a frente: «Isso e aquilo estão atrapalhando o mercado.» O argumento pode ser repetido ad infinitum, pois sempre haverá instituições e práticas, formais ou informais, que «atrapalham» o mercado. Como a vida das pessoas não pode ser reduzida a operações de compra e venda, qualquer sociedade organizada transcende muito o mercado, qualquer uma contém, e reproduz, e recria, inúmeras instâncias não mercantis. Elas sempre serão as culpadas.
As deficiências do projeto neoliberal conduzem seus defensores à inevitável conclusão de que é preciso aprofundar esse mesmo projeto. A incapacidade de realizar-se é, simultaneamente, uma fraqueza do modelo, no plano da realidade, e uma fonte de seu vigor, no plano de ideologia. Mantém-se em ação um moto-perpétuo típico dos pensamentos dogmáticos que não reconhecem nenhuma autoridade fora de si. É isso o que explica a agenda anunciada pelo governo Lula para o próximo ano, em retilínea continuidade com o que já foi feito: reforma das leis trabalhistas, autonomia legal para o Banco Central, negociações para a Alca… Falta tanta coisa a fazer – sempre faltará! -, até que o mercado possa, enfim, nos redimir. Já se foram dois anos, de quatro, do mandato popular…
É o caminho sem volta que o governo Lula trilha alegremente, com uma radicalidade típica de cristão-novo, recém-convertido. Está brincando com fogo. Todos pressentem que a desigualdade social e a dependência externa vêm se tornando dramáticas, colocando em risco a nossa existência como sociedade organizada e nação soberana. Ninguém se iluda: apesar de tanta «maturidade» na política institucional, a sociedade brasileira está longe de ter encontrado um equilíbrio estável. Essas multidões concentradas em grandes cidades, com acesso à informação e sem alternativas dentro do sistema atual são – em tamanha escala – um fenômeno novo em nossa história. É cedo para dizer como vão comportar-se quando perceberem que foram traídas de novo. Considerada em perspectiva histórica, a Revolução Brasileira amadureceu, embora as condições políticas para realizá-la não tenham sido construídas.
Quando o velho já morreu e o novo não nasceu, é tempo de muita incerteza. Como força transformadora, o PT já deixou de existir (a brava Luizianne é a exceção dessa regra). Nossa tarefa, agora e por muito tempo, é refundar a esquerda para refundar o Brasil. Antes que seja tarde demais.
3 de novembro de 2004
* César Benjamin é autor de A opção brasileira (Contraponto, 1998, nona edição) e Bom combate (Contraponto, 2004). Integra o Movimento Consulta Popular.