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Araguaia: mortos que caminham

Fuentes: Rebelión

As marcas das lutas populares estão gravadas na história do Brasil de forma indelével. E a Guerrilha do Araguaia é, sem dúvidas, uma das principais delas. Tanto que os acontecimentos recentes sobre o episódio – principalmente a determinação judicial para que os arquivos referentes ao caso fossem abertos – estão no centro dos noticiários. Mas, […]

As marcas das lutas populares estão gravadas na história do Brasil de forma indelével. E a Guerrilha do Araguaia é, sem dúvidas, uma das principais delas. Tanto que os acontecimentos recentes sobre o episódio – principalmente a determinação judicial para que os arquivos referentes ao caso fossem abertos – estão no centro dos noticiários. Mas, como convém aos que analisam os acontecimentos históricos à luz dos interesses ideológicos dominantes, a resistência à ditadura militar organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) é majoritariamente apresentada como um fato passageiro em nossa história – um mero choque entre grupos extremados à esquerda e à direita, deflagrado com a opção pela luta armada feita pelos primeiros. Essa é uma versão que precisa ser persistentemente desmascarada. Na verdade, havia ali, condensados, dois veios cujas nascentes remontam aos primórdios de nossa existência como nação.

Essa tese de que a defesa enérgica das idéias progressistas é coisa de «fanáticos» é antiga em nossa história. Foi assim com a Inconfidência Mineira, que para certos historiadores só teve repercussão devido à morte violenta de Tiradentes – ignorando a clareza de objetivos e a amplitude do movimento mineiro. Felipe dos Santos, cujo corpo arrastado por cavalos banhou de sangue as ruas de Vila Rica, é outro exemplo. E a conspiração dos Alfaiates, na Bahia, que nos legou quatro mártires da forca, também. Foi igualmente assim com Canudos e Contestado, revoltas populares impiedosamente esmagadas. Essa lógica repressiva demonstra mais do que qualquer palavra a importância desses movimentos. Os repressores não eram imbecis, sabiam perfeitamente o que faziam – ao punir com rigor os revoltosos tinham consciência do que estava em questão.

Decisão progressista do Exército

Do mesmo modo, não correspondem aos fatos históricos certas interpretações que procuram apresentar a truculência do Estado no Sul do Estado do Pará – o local dos combates – e na base de apoio à Guerrilha do Araguaia em São Paulo e no Rio de Janeiro – onde foram assassinados Carlos Danielli, Luiz Guilhardini, Lincoln Oest e Lincoln Bicalho Roque – como meramente coisa dos militares. Os porta-vozes dessa tese esquecem que as Forças Armadas não formam algo à parte na sociedade nem tampouco em relação ao poder político. Se nas duas décadas pós-1964 a função principal das instituições militares foi a de executar o serviço sujo determinado pelos altos interesses econômicos que estavam em jogo, no movimento abolicionista o Exército desempenhou um papel sumamente importante ao recusar-se a caçar escravos fugidos.

Aquela decisão da oficialidade do Exército foi uma verdadeira insubordinação, mas foi sobretudo uma atitude digna – essencialmente progressista. E se podemos buscar características para as Forças Armadas do Brasil, principalmente do Exército, ela é precisamente esta: militância política. Se alguns altos mandatários militares ao longo da história procuraram fazer a política das oligarquias, o mesmo não se pode dizer da massa do Exército. Em todos os movimentos revolucionários do nosso país, das fileiras das Forças Armadas surgiram personagens que são verdadeiras legendas das lutas populares. Maurício Grabois, o principal comandante da Guerrilha do Araguaia, por exemplo, tem origem militar. Assim como Tiradentes, Pedro Ivo e Luiz Carlos Prestes – para lembrar alguns.

Distinção social marcada

A predominância dessas versões maniqueístas sobre os combates entre a Guerrilha do Araguaia e os militares, portanto, não chegam à profundidade dos fatos – que deve ser buscada na nossa formação histórica. Ainda hoje o Estado brasileiro tolera práticas de coronéis violentos, ícones das tradições de um país elitizado e fendido em dois extremos. Tanto que até nos dramas produzidos pela televisão o mote é recorrente. Já escrevi que a estrutura oligárquica brasileira pode ser comparada ao shogunato japonês, sociedade tradicionalmente hierarquizada e belicosa que resolvia qualquer desentendimento ou divergência de opiniões via katana (o sabre dos samurais). Não há um só momento em que os líderes oligárquicos aceitem negociar sinceramente. Idéias como diálogo e contemporização não fazem parte da elite brasileira.

O episódio da escassez de escravos e da chegada dos novos colonos poderia ter sido uma grande esquina na história brasileira. O esforço dos que dirigiam o Estado em manter a ordem estabelecida, no entanto, acabou garantindo a sobrevivência da estrutura oligárquica no país: antes o dono da terra tinha escravos, agora ele tinha vassalos. E, desde então, sua condição de senhor feudal praticamente não se alterou. Ainda hoje, jagunços são utilizados para dirimir as diferenças de opinião no campo. E coronéis seguem solidamente representados em todas as esferas da política nacional. O retrato mais nítido dessa situação é a enorme distância que separa patrão e trabalhador, proprietário e despossuído. Poucos países no mundo convivem pacificamente com uma distinção social tão marcada. A elite brasileira espera de seus subordinados uma reverência inaceitável.

Ideal político bem definido

Do ponto de vista político, essa herança feudal apresenta-se em uma dicotomia clara: de um lado há uns poucos ricos e poderosos que lutam para manter privilégios. De outro, há uma massa imensa que vira e mexe chacoalha a ordem estabelecida. Essa elite não tem um projeto honesto de desenvolver o país e prefere o latifúndio, o monopólio e o cartel. Desgosta de uma economia mais dinâmica, marcada pela profusão de livres iniciativas, porque isso significaria alargar o clube dos proprietários. Em sua concepção, novos jogadores não iriam multiplicar a riqueza mas dividir a já existente. O Estado, tradicionalmente vinculado ao poder econômico, não funciona como elemento de equilíbrio nessa dicotomia e assim contribui para o acirramento das posturas.

A estrutura oligárquica, que pesa sobre o país como um fardo insuportável, esmaga o consumo ao inibir o crescimento das forças produtivas e limitar a divisão social do trabalho. (É preciso ver que que os consumidores não são apenas, nem principalmente, os que compram bens de consumo, mas também e sobretudo os que compram matérias primas e máquinas.) Esse é o ponto. Ele motivou o agravamento da situação política que resultou no golpe militar de 1964 e continua presente em nosso cotidiano, cada dia mais roto e abandonado. As causas da condensação dos dois veios históricos em 1964, portanto, estão aguardando solução. A luta dos guerrilheiros do Sul do Pará e dos demais democratas que deram a vida por elas continua hoje por outros meios. É, a rigor, a mesma luta de Tiradentes, Frei Caneca, Cipriano Barata e tantos outros valentes que tinham um ideal político muito bem definido.

*Jornalista, autor dos livros «Maurício Grabois – Uma Vida de Combates» e «Testamento de Luta – A Vida de Carlos Danielli», integra a equipe do Vermelho e o Conselho de Redação da revista Debate Sindical, é membro da Comissão Estadual de Formação (Cefor) do PCdoB no Estado de São Paulo e foi diretor de imprensa do Sindicato dos Metroviários de São Paulo.