Esta é uma hipotética reunião entre um candidato a presidente do Brasil em busca de financiamento para sua campanha e o presidente de um grande banco brasileiro. Nela, invariavelmente, o segundo faz três perguntas essenciais para a sua própria sobrevivência enquanto grupo privilegiado da sociedade brasileira. As três perguntas básicas são: o que o candidato acha do controle de capitais; do nome de um certo apadrinhado para a presidência do Banco Central; de baixar as taxas de juros e aumentar o depósito compulsório; e de diminuir o sistema de TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo, a mais baixo do país) da Receita Federal, que permite pagar menos impostos sobre juros de capital próprio, aumento os lucros da especulação. Se o candidato vacilar nas respostas, ou for firme na decisão de reduzir juros, controlar capitais, não aceitar indicações para o BC e ainda dizer que acha boa idéia acabar com o sistema TJLP, o banqueiro vai dizer «passe bem», vai dar uma desculpa para encerrar a reunião e no máximo levar o candidato até o elevador. Se todas as respostas forem favoráveis ao banqueiro, começa a acontecer o que o economista Reinaldo Gonçalves, professor na UFRJ, execonomista do Instituto de Cidadania do Partido dos Trbalhadores até junho de 2001, e um dos autores do programas econômicos das campanhas de Lula de 1989, 1994, 1998 e parte de 2002, explicou em palestra na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Convidado pelo Fórum Fluminense de Lutas, Gonçalves falou para uma platéia de servidores em greve e outros descontentes com os rumos de um governo que muitos ajudaram a construir: a desconstrução da economia do Brasil e da esperança.
Os privilegiados
No governo do PT, onde todos imaginavam que os trabalhadores teriam voz, os grupos privilegiados da sociedade, os banqueiros, continuam a ser os principais beneficiários. Se fizermos uma conta da variação do salário versus as taxas de juros dos últimos 20 anos, chegaremos a um resultado extraordinário: no primeiro ano do Governo Lula, os banqueiros tiveram a maior taxa de juros dos últimos 20 anos, o que se traduz em lucros boçais de 3,5 bilhões de reais de apenas um banco, o Banco Itaú, o que representa 34,5% do seu patrimônio, enquanto os trabalhadores tiveram uma queda de 14% em sua renda. Ninguém sai incólume de uma conversa com Olavo Setúbal, querendo alguma coisa de um homem que tem um patrimônio de 6 bilhões de reais, gerencia ativos de 80 bilhões de reais, lucro de 300 milhões por mês, 10 milhões por dia e 1,2 milhão por hora, líquidos, livre de Imposto de Renda. Você vai entregar tudo.
Incoerência
Isto seria coerente num governo do PFL. Mas é no governo Lula que a Receita Federal continua dilapidada, que Henrique Meireles, um homem considerado medíocre por todos os economistas, comanda o Banco Central, agradando ao mercado financeiro, que o Ministério da Fazenda não manda em nada. Há um falso debate, dividindo a turma do governo entre a ala do Palocci, Meirelles e Levy e a do desenvolvimentistas bem-intecionados, que iria de Carlos Lessa a José Dirceu. Isto é uma grande tolice. Não tem governo dividido entre a turma do mal e do bem. Nesse governo, Palocci não manda absolutamente nada, Guido Mantega não manda absolutamente nada. Quem manda nesse governo é Luiz Inácio Lula da Silva, o resto obedece. Lula não tem, nem quer, estrategista na área econômica, ele só opera com quem obedece ou representa interesses com os quais fez acordos antes.
Falta projeto
Falta um projeto para o Brasil e sobra projeto de Poder, ânsia de se manter a qualquer custo. A idéia é a de seguir as três diretrizes básicas do projeto de governo ( reduzir o volume a dívida externa , combater a exclusão e aprofundar a democracia), desde que não comprometa a governabilidade, porque pagarão todo e qualquer preço pela chegada, manutenção e ampliação do poder. Esse é o ponto central, que compromete as diretrizes básicas do programa. Não há mais valores e ideais por trás da estratégia dos grupos dirigentes que estão tomando conta do poder.
Visão equivocada
O governo Lula é ruim para nós, para o Brasil, para servidor público. Lula tem uma visão primitiva e tola de que servidor público é um privilegiado que não trabalha. Portanto, vai tratar o servidor público sempre de uma forma autoritária, idiossincrática, e não como um componente fundamental de reforço de um estado nacional que precisa ser reconstruído, porque vem se degradando. Isso se expressa, de início, na montagem da equipe econômica. Ele disse: não quero marola. Marola significa enfrentamento com quem tem o poder econômico no Brasil, que são: os banqueiros. A eles, Lula recompensou com as maiores taxas de juros dos últimos 20 anos; as oligarquias estaduais, beneficiadas com cargos e proteção, como ACM e José Sarney; o agrobusiness, que são os latifundiários, levados para o Ministério da Agricultura, com direito a crédito, lei dos transgênicos; tratamento cinco estrelas; a burguesia industrial exportadora e decadente, levada para o Ministério da Indústria e Comércio pelas mãos do caixeiro-viajante Luis Fernando Furlan, que não formula estratégia de política industrial nem tecnológica, e só pensa numa coisa – vender lá fora.
Ano trágico
2003 foi uma tragédia, em termos econômicos. Você podia ter uma política alternativa de enfrentamento do sistema financeiro internacional, doméstico, das oligarquias. Ia ter briga , mas você não pode ter benefício sem custo.Mas o Lula só bate, só entra em luta contra quem ele acha que tem 80% de chance de ganhar; senão sai pela tangente, não disputa, não vai para o conflito. É fácil entender a manutenção da política permanente de juros altos e a falta de controle do fluxo de capitais: qualquer sujeito que tem dinheiro pode abrir uma empresa com 900 doláres (que dizer, qualquer um, não, pois nenhum de nós pode ter conta em dólar), abrir uma conta em nome da empresa que mantém no exterior, e ficar fazendo DOC de real para dólar e de dólar para real. É a chamada CC5, mandando dinheiro para fora. A maior saída de capital do Brasil não é através de doleiro, isso é coisa para amador, quem faz transferência de recursos para fora é o sistema financeiro, é legal. É o que a turma do BC faz. Quem podia ter fechado essa torneira era o Lula, bastando dar respaldo a alguém para assinar quatro folhas de papel A4 e interromper o mecanismo.
Turbulência zero
O anúncio do Henrique Meireles para o BC foi feito em Wasghinton. Meireles, tecnicamente é muito medíocre, não entende nada de economia, mas ele tem um valor simbólico, foi presidente do Banco de Boston. A política econômica esta marcada por isso, zero de turbulência, máximo de governabilidade, não mexer nos grandes interesses e bater em fraco, em aposentado, por exemplo, e no pessoal que recebe salário mínimo e, no caso dos servidores públicos, dividir para governar. Só que ele deu um azar muito grande, porque eles erraram na mão no ano passado, por incompetência. E a renda caiu muito, a recessão foi muito grande, o desemprego explodiu. Quando a curva fez isso, a popularidade do governo e do Lula caíram. Em setembro, quando vieram os dados do PIB, ele ficou apavorado. Chamou Meireles e disse: camarada, comece a baixar os juros, o Meireles retrucou que não dava; mas ele, reafirmou: não interessa, comece a baixar os juros.
Crescimento insustentável
Depois de um longo arrocho no crédito, o povo voltou a fazer a chamada reposição de estoque dos bens de consumo duráveis, uma vez que a geladeira quebrou, só funcionam três das quatro bocas do fogão, o carro de dez anos só dá prejuízo, o CD já quebrou há muito tempo e só funciona o rádio. Como a indústria ficou sem investir durante muito tempo e está sem capacidade ociosa, qualquer recuperadazinha de 2,5% a 3% na economia todo mundo chega à plena capacidade. É o que está acontecendo. Alguns setores industriais estão fazendo investimento, porque estão no limite da capacidade e vão ser atropelado no processo. O atual é um miniciclo de otimismo, depois de uma pindaíba de três anos, quando não tem mais jeito é hora de trocar o fogão. Isso já aconteceu antes na História do Brasil, mais recentemente em 2000 e em 2001. Esse ciclo vem, mas lamentavelmente não se sustenta, porque você não teve mudança na base da economia.
Sombra do coqueiro
O que acontece na economia brasileira é algo assim como alguém ganhar R$ 40 milhões na mega-sena. Alguém sugere fazer um empreendimento na Tijuca, abrir uma loja no Nova Iguaçu Shopping, uma empresa de Vans ou fábrica de camisa ou lingerie em Vilar dos Telles (Nova Iguaçu, Baixada Fluminense). Você pensa, pensa, mas resolve pegar R$ 20 milhões e transformá-lo em 7 milhões de dólares para mandar lá para fora, numa operação simples em um banco na rua da Assembléia, pagando uma taxa de administração de 1%. Os outros R$ 20 milhões coloca na renda fixa do Banco do Brasil a 1% ao mês. Você terá R$ 200 mil por mês para viver à sombra dos coqueiros. Alguém vai querer fazer uma injetora plástica na Avenida Brasil ou plantar laranja em Niterói? Coisa nenhuma. Não faz. Nem eles estão fazendo. Portanto, há, de fato, uma melhora, pelo efeito demanda reprimida pela pindaíba de três anos.
Risco nas exportações
Em segundo lugar, houve o crescimento da renda puxada fundamentalmente por exportações. A produção em qualquer lugar do mundo tem que ser orientada para o consumo:o governo gasta ou, então, o capitalista investe. Outra maneira da renda crescer é exportar. O que aconteceu no Brasil no ano passado? O consumo dos trabalhadores, investimento dos capitalistas e os gastos públicos caíram 3,5%; as exportações aumentaram 12%. No primeiro trimestre do ano, esse consumo, esse investimento, esse gasto público cresceram 1,5%, e as exportações 14% . Então, quem está puxando a economia brasileira são as exportações, em grande medida de produtos agrícolas. Só que os preços dos produtos agrícolas que estavam alto, começaram a cair, soja e milho estão despencando. A gente está vendendo muito lá pra fora, mas é uma conjuntura do mercado internacional de demanda e preço favorável . Produto agrícola tem esse comportamento, você tem um ciclo de três a quatro anos subindo, depois é que nem balão de São João, cai. É o comportamento de comodditties.
Mídia sai ganhando
O fato é que Lula não mudou em nada a política econômica de Fernando Henrique. A vulnerabilidade externa do Brasil continua muito grande. Nossas reservas continuam baixas, houve um superávit comercial de R$ 23 bilhões, mas as reservas praticamente não aumentaram, porque esse dinheiro saiu para pagar juros. Nós pagamos 18 bilhões ano passado, este ano já pagamos mais do que em 2003, e a turma continua mandando dinheiro para fora. Lula não fez a proteção que devia ter feito, só deixou o dólar cair para combater a inflação e facilitar a vida das empresas endividadas em dólar,inclusive os grandes grupos da área de comunicação. Estes tinham que comprar dólar a R$ 4. Quando Lula entrou, o dólar estava a R$ 3,53, hoje está R$ 3. Então, essa turma ganhou tremendamente. No fim do governo Fernando Henrique, o PT – José Genoino foi o principal articulador disso-, defendeu os 30% do capital estrangeiro para os meios de comunicação, o que agora é lei; receberam financiamento do BNDES, e a redução do dólar para R$ 2,83.Com isso, ganharam os grande grupos econômicos que tinham dívidas de R$ 3 bilhões ou U$ 1 bilhão de dólares, pagando 12% ao ano, o que significa 120 milhões ao ano. Se multiplicarmos esses 120 milhões por US$ 4, a dívida chega a R$ 480 milhões ao ano; se multiplicarmos por US$ 3 ou 2,85%, são R$ 360 milhões, uma economia de RS$ 120 milhões. Como, aparentemente, a Globo está endividada em R$ 3 bilhões, a economia que teve de quase R$ 500 milhões em um ano é algo precioso.
Mundo desconfiado
Mas o risco-Brasil (Nota da redação: medida da desconfiança dos investidores internacionais na capacidade de um determinado país pagar suas dívidas) continua muito alto. Quando Lula entrou, o Brasil era classificado como o terceiro pior risco; no fim do ano passado, passou ao quarto pior risco; e agora voltou a ser o terceiro pior risco. O mundo não confia na gente, e com razão. Então, não houve nenhuma mudança substantiva na política externa do país. Nós, que criamos o programa de governo do PT, tínhamos três diretrizes estratégicas: combater a exclusão social, reduzir a vulnerabilidade externa e aprofundar a democracia. Esta, acabou com a expulsão da Heloisa Helena, o comportamento do STF, as práticas de lidar com o movimento sindical, bem diferentes das formas de lidar com as oligarquias. Não estamos aprofundando a democracia no Brasil, muito pelo contrário. A exclusão social está aumentando. Os indicadores de exclusão social são salário e desemprego. O rendimento real médio do trabalhador está caindo, e hoje temos mais desempregados do que há um ano e meio. Toda vez que o PIB brasileiro cresce menos de 3,5 aumenta o desemprego e, em conseqüência, a exclusão social.
Controle de doleiros
Controlar capital internacional é um tema tabu para Lula, porque é briga de cachorro grande. Quando ele faz essa história de fiscalizar doleiro, só há uma hipótese por trás disso: reduzir as chances dos adversários na campanha eleitoral, porque boa parte do financiamento vem exatamente da turma que mandou dinheiro para fora, para se proteger, e na campanha eleitoral traz o dinheiro de volta, via doleiro. Então, essa história do doleiro é para reduzir os recursos da turma que se financia com dinheiro de fora, com seu próprio dinheiro que está lá fora. É uma maneira de cortar a torneira dos candidatos a prefeito e vereadores que não estão vinculados ao governo. Ao fechar o sistema de doleiro está secando a fonte desses candidatos.
Edição: Rose de Souza e Cristina Carvalhaes.
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