Desagrada-me o fato de ver o Brasil mencionado recentemente nos grandes jornais internacionais como um país cujas atividades nucleares seriam preocupantes. Na semana passada, o «Times», de Londres, recomendou que os Estados Unidos «tomassem cuidado com o Brasil» (a propósito, o jornal não aceitou publicar a íntegra de carta que em resposta lhe dirigi). Coincidentemente, […]
Desagrada-me o fato de ver o Brasil mencionado recentemente nos grandes jornais internacionais como um país cujas atividades nucleares seriam preocupantes. Na semana passada, o «Times», de Londres, recomendou que os Estados Unidos «tomassem cuidado com o Brasil» (a propósito, o jornal não aceitou publicar a íntegra de carta que em resposta lhe dirigi). Coincidentemente, no mesmo dia um «ex-funcionário» do Pentágono declarou que a Aiea (Agência Internacional de Energia Atômica) andaria suspeitando que o Brasil tivesse realizado operações de «compra» do cientista paquistanês A. Q. Khan.
Estranhamente, essas imprecisas acusações contra o Brasil nunca são oficiais, mas deixam no ar a séria sugestão de que o País está fazendo algo de errado.
Minha experiência como diretor-geral da Opaq faz-me acreditar que esteja em curso uma campanha de desinformação destinada a constranger o governo brasileiro para dele obter «concessões» na área nuclear. O que estamos fazendo que tanto preocupa certos países e a Aiea?
O governo brasileiro não tem nada a esconder: somos uma democracia, em que todas as iniciativas do Estado estão sujeitas a controles com base na norma constitucional, que proíbe atividades nucleares para fins bélicos. O Brasil é signatário de diversos tratados internacionais. Sujeita-se às inspeções rotineiras da Aiea. A nossa ultracentrífuga, a ser usada em Resende, não deveria suscitar tanta preocupação. Trata-se de equipamento desenvolvido endogenamente, que já está em operação há vários anos em instalações inspecionadas pela agência.
Por que, então, em Resende, tem a Aiea exigido «mais acesso»? Por que se pede com tanta veemência que o Brasil assine já o Protocolo Adicional de Salvaguardas, que daria ainda maior poder de acesso à Aiea?
Importantes interesses parecem incomodados por o Brasil estar se tornando cada vez mais capacitado na área nuclear
No fundo, importantes interesses parecem incomodados com o fato de o Brasil, ao passar a enriquecer urânio em escala comercial, estar se tornando um país cada vez mais capacitado na área nuclear. Não é bem visto, ademais, que o Brasil se torne autônomo na produção de combustível nuclear (é isso que a fábrica de Resende representa), podendo até mesmo exportar o produto e quebrar o oligopólio internacional na área. Preocupa que o Brasil avance em seu projeto de propulsão naval, tornando-se o sétimo ou oitavo país do mundo a se dotar de um submarino nuclear, alcançando reeminência estratégica no Atlântico Sul.
Parto do princípio de que, em razão de nossas credenciais únicas, a ninguém pode ocorrer a absurda possibilidade de fabricarmos a bomba. Nossas aspirações são legítimas e pacíficas e visam atender às necessidades de nosso extenso litoral, bem como às demandas de uma nação sedenta de desenvolvimento. Cabe lembrar, por exemplo, a última crise energética sofrida pelo País – o que exige que exploremos as fontes de energia disponíveis para atender ao sustentado crescimento da economia.
A proteção da tecnologia não é pretexto do Governo para transgredir acordos internacionais. Não sejamos ingênuos: se patente resolvesse, as potências nucleares teriam patenteado a bomba atômica! A tecnologia da ultracentrífuga é 100% nacional e tem diferenciais importantes em relação às de outros países (quem não acredita que o Brasil é capaz de desenvolver tecnologia, que se lembre da nossa urna eletrônica, da declaração de Imposto de Renda pela internet, dos programas que tanta agilidade conferiram ao nosso sistema bancário…).
Se nossa tecnologia autóctone vazar, não apenas perderemos competitividade científica, técnica, comercial e industrial, mas também nossos intensos esforços de capacitação nuclear podem vir a ser mais facilmente retardados, como o vêm sendo há décadas.
Lembro que, apesar de ter assinado o Tratado de Não-Proliferação em 1998, além de todos os demais instrumentos internacionais pertinentes, o Brasil continua sofrendo restrições à aquisição de materiais nucleares no exterior. Não podemos permitir que se possam «mapear» aspectos de nossa tecnologia em que ainda não alcançamos capacitação plena: aí está nossa vulnerabilidade. Novamente, não sejamos ingênuos. Quando eu era diretor-geral da Opaq, nunca pude estar seguro, apesar de meu rigoroso envolvimento pessoal, de que o sofisticado regime de confidencialidade de «última geração» lá adotado fosse suficientemente confiável.
O governo brasileiro demonstra muito boa vontade e, porque nada de ilícito tem a esconder, vai seguramente encontrar a solução técnica que permita à Aiea verificar criteriosamente a inexistência de atividades nucleares não-declaradas em Resende, até mesmo – quem sabe? – por meio da eventual aplicação do protocolo adicional, sem prejuízo de nossos interesses legítimos.
Parece-me imperativo que a sociedade brasileira – em especial o Congresso Nacional e nossa imprensa – não se deixe iludir por certo «botabaixismo» doméstico e por insinuações alienígenas despropositadas sobre as atividades nucleares do Brasil. Devemos rechaçar a idéia de que somos um país «periférico». O governo do presidente Lula está cuidando dos interesses estratégicos do País. É preciso que a sociedade brasileira se mantenha unida diante dessa questão essencial para o futuro do Brasil.
* José Mauricio Bustani, 59, diplomata, é o embaixador do Brasil em Londres. Foi diretor-geral da Opaq (Organização para a Proibição de Armas Químicas), de 1997 a 2002 – Folha de São Paulo – 10/10/2004