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Analise de conjuntura de junho

Nasce uma campanha: controle de capitais

Fuentes: Outro Brasil

1. Em 2003, nosso governo pagou R$ 149 bilhões em juros aos detentores de títulos da dívida interna (que, não obstante, continuou a aumentar). Foi uma quantia 5 vezes maior do que os gastos autorizados em saúde pública, 8 vezes maior do que os gastos autorizados em educação, 28 vezes maior do que em transportes, […]

1. Em 2003, nosso governo pagou R$ 149 bilhões em juros aos detentores de títulos da dívida interna (que, não obstante, continuou a aumentar). Foi uma quantia 5 vezes maior do que os gastos autorizados em saúde pública, 8 vezes maior do que os gastos autorizados em educação, 28 vezes maior do que em transportes, 47 vezes maior do que em segurança pública, 50 vezes maior do que em preservação do ambiente, 70 vezes maior do que em ciência e tecnologia, 140 vezes maior do que em reforma agrária e 700 vezes maior do que em saneamento básico. Os números dispensam comentários.

Quanto ao front externo, eis alguns dados divulgados pela edição de 5 de maio de O Globo, que usa como fonte o Banco Central: «Os depósitos [declarados] de pessoas físicas e jurídicas [brasileiras] em contas no exterior passaram [em 2003] de US$ 7,89 bilhões para US$ US$ 16,69 bilhões, com aumento de 111%. Em derivativos (operações de mercado futuro), a expansão chegou a 327%, com aumento de US$ 104,7 milhões para US$ 436,9 milhões. (…) A previsão do Banco Central é que, em 2004, (…) os brasileiros desembolsarão US$ 15,9 bilhões em juros de dívidas no exterior e US$ 6,6 bilhões em remessas de lucros, num total de US$ 22,5 bilhões – valor próximo da estimativa do superávit comercial de US$ 24 bilhões. O saldo comercial está cobrindo as despesas financeiras com juros e remessas.»

Um país que trabalha e exporta mercadorias durante um ano inteiro apenas para pagar juros e remessas ao exterior está colocado, para lembrar um artigo recente do embaixador Rubens Ricupero, na posição de escravo de ganho. Eram assim denominados os escravos que, no século XIX, faziam trabalhos manuais nas ruas das cidades brasileiras e, no fim do dia, repassavam aos senhores a receita obtida. Por meio de um título de propriedade, o fruto do trabalho de um tornava-se renda do outro.

O povo brasileiro, hoje, é escravo de ganho dos detentores dos títulos da dívida interna. E o Brasil, como um todo, é escravo de ganho do sistema financeiro internacional. A gravidade da situação contrasta de forma chocante com a inapetência do governo para enfrentá-la.

2. Nesse contexto, reconhecendo a urgência de propor mudanças, intelectuais, organizações não governamentais e movimentos sociais iniciaram uma campanha pelo controle da movimentação de capitais. Nos dias 28 e 29 de maio realizou-se em São Paulo um seminário sobre o tema, com patrocínio da Fundação Rosa Luxemburgo, do ATTAC e do Grupo de Pesquisa em Moeda e Crédito da PUC-SP. Nas mesas, estiveram presentes, entre outros, os economistas Luís Gonzaga Belluzzo (Unicamp), João Sicsú (UFRJ), Leda Paulani (USP), Carlos Eduardo Carvalho (PUC-SP), Marcos Cintra e Daniela Prates (Fundap), Carlos Schmidt (UFRGS) e João Machado (PUC-SP), o filósofo Paulo Arantes (USP), o sociólogo Francisco de Oliveira (Cebrap), as procuradoras Raquel Branquinho e Valquíria Nunes e o deputado federal Sérgio Miranda (PCdoB-MG), além de Antônio Martins (ATTAC) e Moema Miranda (Ibase). Os textos apresentados e debatidos no seminário estão publicados nas páginas www.rls.org.br (rubrica «eventos realizados») e www.planetaportoalegre.org.

A campanha pelo controle de capitais é o nosso tema do mês. Dois cuidados iniciais são necessários. O primeiro, com as palavras. Pois a forma predominante de dominação ideológica não é mais o puro e simples ocultamento dos fatos, um estratagema bastante primitivo, usado pelas ditaduras. A dominação se faz, hoje, muito mais pela capacidade de nomear. Mário de Andrade dizia: «As pessoas não pensam as coisas, elas pensam os rótulos.» Tinha toda razão. Boa parte do jornalismo contemporâneo – e quase todo o jornalismo econômico – tornou-se apenas uma grosseira arte de rotular.

À lei que define que os recursos públicos devem ser prioritariamente orientados para pagar juros ao sistema financeiro, em detrimento de todos os demais gastos do Estado, rotula-se «lei de responsabilidade fiscal». À recorrente prática de cortar gastos essenciais, para sustentar esses mesmos pagamentos, rotula-se «disciplina» ou «austeridade», necessárias para formar um «superávit primário». Ao desmonte dos mecanismos de defesa de uma economia periférica e frágil rotula-se «abertura». Aos efeitos do desvio das contribuições sociais – recolhidas pelo Estado, conforme a Constituição, para financiar o sistema de Seguridade Social – rotula-se «déficit da Previdência». E assim por diante.

Esse procedimento nada tem de ingênuo. Cabe aos meios de comunicação difundir esses rótulos e, pela repetição, incorporá-los à linguagem comum. Feito isso, não há mais debate possível. Afinal, quem pode ser contra «responsabilidade», «disciplina», «austeridade», «abertura», «superávit», coisas evidentemente tão boas? Quem pode ser a favor de «déficit», coisa intrinsecamente tão ruim?

Em plena vigência de um regime político que garante liberdade de imprensa, paradoxalmente, quase ninguém tem acesso aos conteúdos das questões. Tudo fica paralisado no rótulo, pontos de partida e de chegada da mensagem, na medida em que bloqueia qualquer pensamento.

O mesmo se dá na discussão que travaremos aqui. Também neste caso, o nome da coisa – «livre movimentação de capitais» – tem sido cuidadosamente escolhido para matar e impedir o debate. Quem pode ser contra uma «livre movimentação»? Não é a liberdade um conceito legítimo em si?

(Toda essa prestidigitação semântica, que sustenta a ideologia econômica dominante, poderia desfazer-se por meio de um simples ato de renomear. Por exemplo, se chamássemos a «lei de responsabilidade fiscal» de «lei que define que garantir o pagamento de compromissos financeiros é mais importante do que investir em serviços essenciais», os pontos de vista seriam automaticamente modificados. Porém, só quem controla os meios de comunicação de massa pode nomear e renomear de forma eficaz.)

3. Escapemos dos rótulos. Tentemos compreender o conteúdo da coisa. A «livre movimentação de capitais» é o desmonte de mecanismos que historicamente buscaram compatibilizar, de alguma forma, o impulso à acumulação de capital privado, de um lado, e os interesses mais gerais da sociedade, como interesses de soberania e de cidadania, de outro. Ambos não são necessariamente incompatíveis, mas tampouco são necessariamente harmônicos. A economia política, em todos os tempos, foi profundamente marcada pelas tentativas de compatibilizá-los.

Numa economia, como a nossa, que apresenta contas externas estruturalmente frágeis, quando os capitais se movimentam sem regulamentação, para dentro e para fora, alteram-se, antes de tudo, as relações de poder. Pois a movimentação descontrolada de riqueza financeira impede o controle e até mesmo o cálculo da taxa de câmbio, ameaçando, com esse descontrole, desorganizar todo o sistema de preços em que se baseia a economia real. Como o mercado de câmbio é excepcionalmente volátil, ultra-sensível a movimentos especulativos, o capital financeiro adquire desse modo um poder de veto sobre quaisquer decisões que a sociedade queira tomar. O Estado torna-se refém dos seus movimentos. Se não fizer o que ele deseja, aparece a ameaça de caos. Nesses contextos, como dizia antes a velha Margareth Tatcher e diz agora o novo PT, «não há alternativa».

O que se discute, pois, não é se devemos ter mais ou menos liberdade abstrata, mas que graus de liberdade o capital, o Estado e a sociedade devem ter, qual equilíbrio se deve buscar entre diferentes agentes, de modo a maximizar as perspectivas de desenvolvimento e o bem-estar coletivo. A máxima liberdade de um é a mínima liberdade do outro. Se o capital financeiro está livre, o Estado nacional está preso. Se o Estado não define regras, ele mesmo tem de adaptar-se às regras que o capital definirá. O poder soberano troca de mãos.

4. O segundo cuidado, a que nos referimos, é com a mistificação da história. Os defensores da desregulamentação apresentam-se como representantes de um saber econômico consolidado e tradicional, e não hesitam em classificar de experimentalistas e aventureiras as posições divergentes. Nada mais falso. Até quase o final do século XX, nenhum economista sério, de qualquer filiação doutrinária, considerou digna de exame a idéia de que países com contas externas vulneráveis pudessem liberar os movimentos de capital. Todo o pensamento econômico consolidado e tradicional não só defende, mas recomenda e muitas vezes exige a regulamentação. As diferenças são apenas de ênfase, nunca de ponto de vista.

É fácil entender por quê. Sempre que estamos diante de recursos escassos é preciso fazer um orçamento, ou seja, planejar os gastos. O Orçamento público, por exemplo, é um plano de gastos do Estado, em moeda nacional, num contexto em que as demandas a serem atendidas superam os recursos disponíveis em cada momento (se os recursos fossem sempre abundantes, orçamentos seriam desnecessários). Ora, o recurso mais escasso de todos, para nós, não é nem moeda nacional nem títulos públicos (que, ambos, o nosso Estado pode emitir), mas sim a moeda estrangeira (que o nosso Estado não pode emitir) necessária para manter em funcionamento uma economia que necessita fazer compras e pagamentos no exterior. Os neoliberais defendem que o Orçamento do Estado em moeda nacional seja estritamente regulamentado, austero, disciplinado, «responsável». Mas, paradoxalmente, também defendem que não se faça um Orçamento de divisas (essas sim, muito escassas), de modo que qualquer especulador, a qualquer momento, por qualquer motivo, possa converter em dólares os reais que desejar, o que mantém as reservas do Banco Central sob permanente risco.

Disso pode resultar uma crise que paralise as transações do país com o exterior. Daí o cuidado que os economistas verdadeiramente responsáveis sempre dedicaram a essa questão. Eles ficariam surpresos se adivinhassem que, contemporaneamente, aventureiros taxariam de aventureirismo suas sensatas recomendações no sentido de manter sob controle o endividamento, de modo a evitar situações de inadimplência.

5. Para evitar esse tipo de desequilíbrio – que, ocorrendo em muitos países, afetaria negativamente o sistema internacional -, a primeira versão do acordo de Bretton Woods (1944), que reorganizou o funcionamento do sistema capitalista depois da Segunda Guerra Mundial, exigia, por demanda inglesa, que os países signatários controlassem os movimentos de capital. Depois, por concessão aos Estados Unidos (que, após Bretton Woods, obtiveram a predominância de sua moeda nacional sobre o sistema internacional, e com isso se libertaram de pressões sobre seu próprio balanço de pagamentos), a versão final do acordo passou a recomendar esse controle. É esta a expressão que consta até hoje no artigo VI dos estatutos do Fundo Monetário Internacional. Para enfatizar a recomendação, esses estatutos proíbem o Fundo de aportar recursos a países cujos desajustes externos sejam causados por desequilíbrios na conta capital. O controle dessa conta – que consolida as relações financeiras entre o país e o exterior – é atribuição, responsabilidade e obrigação de cada Estado nacional. O FMI só pode financiar desequilíbrios em transações correntes (ou seja, originadas nas contas comercial e de serviços). Toda a sua recomendação recente, sob orientação dos Estados Unidos, no sentido de favorecer a abertura das contas capital, bem como suas decisões de conceder empréstimos a países que se desequilibram por causa dessas aberturas, é uma violação de seus estatutos.

O controle dos movimentos de capital sempre foi regra, nunca exceção. Até mesmo os Estados Unidos – cujo balanço de pagamentos, como dissemos, é protegido pela condição especial de país emissor da moeda mundial – lançaram mão desse controle quando, na década de 1960, instituíram o chamado «imposto de equalização» sobre a saída de capitais que migravam para a Europa. No Velho Continente, todos os países, inclusive a liberal Inglaterra, usaram controles extensamente até a década de 1990. O Japão, na prática, os mantém até hoje, apesar das pressões norte- americanas. A desregulamentação da conta capital nos países periféricos só começou nessa década, e em poucos anos produziu crises em todos os continentes, até mesmo nas economias dos chamados Tigres Asiáticos, cuja inserção internacional sempre foi muito mais robusta que a nossa.

No Brasil, a desregulamentação foi impulsionada pelo governo de Fernando Collor, aprofundada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso e mantida pelo governo de Lula, inclusive ao arrepio da lei (como está relatado na ação civil pública movida pelas procuradoras Raquel Branquinho e Valquíria Nunes; elas denunciaram à Justiça quinze dirigentes do Banco Central que alteraram leis por meios de simples resoluções, sem obter aprovação no Poder Legislativo). Desde a crise de 1929 a conta capital esteve estritamente regulamentada no Brasil. Assim permanece na China e na Índia, os países periféricos que, não por acaso, apresentam, de longe, os melhores resultados econômicos nas últimas décadas.

Insistimos nesses exemplos para mostrar que é completamente falsa a idéia de que o saber econômico consolidado recomenda desregulamentação, sendo aventureira a proposta de adoção de controles. A realidade é o contrário disso. E a literatura econômica é rica em estudos que demonstram a necessidade desses controles.

6. Esse debate remete diretamente a questões decisivas. A primeira é o que podemos chamar de nossa condição de economia reflexa. Tentemos entendê- la.

A história da economia brasileira (e a dos demais países da América Latina), nos últimos trinta anos, pode ser contada como a história de suas sucessivas adaptações aos ciclos do capital financeiro internacional. Na década de 1970, o acúmulo dos chamados petrodólares e a desregulamentação de algumas praças financeiras, com a formação dos chamados mercados off-shore, produziram um excesso de liquidez, logo repassado às nossas economias, que o absorveram sob a forma de dívidas. As condições pareciam propícias, com juros em torno de 4% ao ano.

Na década de 1980, as políticas do governo norte-americano inverteram a situação, conduzindo o sistema financeiro internacional a uma crise de liquidez que se traduziu em um dramático aumento nas taxas de juros, igualmente despejado sobre nossos países. Fomos levados a realizar um ajuste em sentido contrário, não mais voltado para absorver recursos sobrantes, mas para remeter, ao exterior, um múltiplo do que havíamos recebido. Os credores elevaram as taxas de juros a até 23% ao ano, fazendo-as incidir retroativamente sobre o estoque de dívida contraído na década anterior. Nossas economias quebraram. Logo sobrevieram choques cambiais e uma inflação galopante. Tivemos a primeira década perdida em termos de crescimento econômico.

Na década de 1990, o sistema financeiro voltou a dispor de excesso de liquidez, retornando a uma posição emprestadora. Foi a vez da renegociação das chamadas «dívidas velhas» da América Latina, contraídas na década de 1970, seguida de planos, entre os quais o Plano Real, cujo verdadeiro lastro foi a abertura de um novo ciclo de endividamento. Com o país voltando a receber novamente vultosos recursos do exterior, a crise inflacionária pôde ser contida, ao preço de formar-se um novo passivo externo em expansão. Qualquer contração no sistema financeiro internacional abrirá para nós um novo período de dificuldades, pois estamos longe de terminar de pagar a «dívida velha», à qual se soma a «dívida nova», feita nos dez últimos anos.

Este é, talvez, o principal problema estrutural da economia brasileira (e latino- americana): sua condição de economia reflexa, que apenas reage e se adapta a ciclos externos e, por isso, não constitui o seu próprio projeto de desenvolvimento. A abertura da conta capital, na década de 1990, aprofunda e torna mais dramática essa nossa condição, que não é nova.

7. Em trabalhos realizados em meados da década de 1950, em plena euforia do Plano de Metas, Caio Prado Jr. chamava a atenção para as conseqüências negativas de uma industrialização realizada sob o comando do capital estrangeiro. Os vínculos voláteis desse capital com o espaço econômico nacional faziam com que o Brasil apresentasse fraca capacidade de controlar o seu próprio processo de desenvolvimento.

Importa aqui, antes de mais nada, ressaltar a definição de Caio Prado para o conceito de capital estrangeiro: um capital cujo espaço permanente de manobra ultrapassa amplamente o espaço da sociedade nacional e que mantém com ela vínculos tênues, ligados a oportunidades específicas de realizar bons negócios. Sob esse ponto de vista, o principal efeito da abertura da conta capital é tornar todo capital, potencialmente, capital estrangeiro, independentemente da nacionalidade dos seus titulares, pois desaparece o próprio conceito de espaço monetário nacional . Caio Prado nunca imaginou que pudéssemos chegar ao paroxismo da situação atual. Em 2002, US$ 13 bilhões entraram no Brasil sob a forma de saldo comercial e nada menos que US$ 9 bilhões deixaram o país pelo mecanismo das chamadas contas CC-5, que permitem remessas não controladas pelo Banco Central. Na outra ponta, verifica-se que, desde 1995, os países que mais investem no Brasil são sistematicamente os paraísos fiscais, que superam com folga até mesmo os Estados Unidos. O dinheiro que vem dos paraísos entra como se fosse investimento direto estrangeiro, quando na maior parte, como todos sabem, é dinheiro de brasileiros que faz o trajeto de fuga para retornar, quando assim desejar, protegido pelo estatuto, mais favorável e isento de tributos, de capital estrangeiro.

A ampla predominância desse capital estrangeiro – cujos proprietários, repetimos, o mais das vezes são brasileiros – tem diversas conseqüências sobre a dinâmica da nossa economia. A primeira é a fraca capacidade de a sociedade disciplinar o impulso de acumulação de capital, subordinando-o a objetivos maiores, como a ampliação da soberania, da cidadania e do próprio desenvolvimento, visto em perspectiva de longo prazo. A segunda é a radicalização da dinâmica reflexa, marcada por ajustes passivos aos ciclos internacionais, com tendência a crises externas recorrentes. Nossos ciclos de modernização sempre foram liderados pela assimilação de padrões de consumo criados em sociedades muito mais ricas (o que exige a concentração da renda nacional, para reproduzir aqui um mercado adaptado a esses bens) e financiados por meio de endividamento externo, o que manteve nossa economia sujeita a crises no balanço de pagamentos. Essas características tendem a agravar-se. Pois, se o capital estrangeiro predomina – e se, como vimos, todo o capital nacional se transforma também em capital «estrangeiro», no sentido de Caio Prado – então o ciclo da acumulação capitalista não é mais D – M – D’, tout court. Ele passa a conter em si um enorme fator complicador, na medida em que se generaliza a demanda de que D’ seja moeda estrangeira. Isso exacerba sobremaneira a fragilidade estrutural do balanço de pagamentos. Decorre daí a tendência a surtos de desenvolvimento instável, sujeitos a interrupções bruscas ou mesmo reversões, que têm gerado a desindustrialização precoce do Brasil e de outros países da América Latina.

8. Uma incerteza exacerbada, uma alta instabilidade nas condições em que se processa a acumulação, um desenvolvimento intrinsecamente instável fazem com que o capital potencialize sua natureza especulativa e passe a exigir duas coisas: altíssima rentabilidade e enorme certeza no curto prazo. A altíssima rentabilidade é a contrapartida exigida para que, num sistema aberto e desregulamentado, a riqueza líquida aceite trocar a moeda melhor (o dólar) pela pior (o real), ou então (o que dá no mesmo) aceite não realizar o movimento inverso. A enorme certeza no curto prazo é a contrapartida exigida diante da incerteza estrutural, de longo prazo, que ronda essas economias. Por isso, a garantia legal de mobilidade plena, dada pela abertura da conta capital, vem acompanhada de outras exigências: governos acocorados, sociedades desmobilizadas (que aceitem crescentes restrições ao exercício da soberania e da cidadania), instituições servis, «disciplina fiscal», Banco Central independente (de fato ou de direito) e, principalmente, garantia de que aquela mobilidade legal poderá ser exercida, de fato, a qualquer momento. Esta última garantia é dada pelo aval do FMI à política econômica: em caso de crise cambial, o Fundo aporta os recursos necessários, em moeda forte, para garantir a fuga ordenada de capitais, com o ônus recaindo depois sobre o conjunto da sociedade, que pagará esses empréstimos. Para conceder esse aval, o FMI, como se sabe, impõe suas condicionalidades. O cerco se fecha (ver, sobre isso, «As relações do Brasil com o FMI», análise de outubro de 2003, publicada nesta página).

No artigo «Estado, império e propriedade» (Reportagem, n. 52, janeiro de 2004), Carlos Medeiros escreveu: «Com a desregulação financeira, a riqueza da nação e a riqueza dos residentes nacionais não mais se exercem no mesmo território monetário regulado soberanamente pelo Estado nacional. (…) Nos anos 90, em sua maioria, os países [latino-americanos] praticaram abrangente abertura da conta capital, privatizaram e desnacionalizaram os principais setores de infra-estrutura e alteraram os mecanismos de proteção social. (…) A inserção internacional pela conta capital significou duas coisas. Em primeiro lugar, o acúmulo de elevado passivo externo, o aspecto mais conhecido e mensurado; de outro, a expansão da riqueza financeira privada denominada em dólares. Essas transformações estão na base da desmontagem dos mecanismos de coordenação que caracterizaram o Estado desenvolvimentista. As assimetrias criadas entre setores internacionalizados e os voltados para o mercado interno e a fratura de interesses entre, de um lado, as famílias ricas e dolarizadas e, de outro, as demais, estão na base dos movimentos de fuga-reversão-fuga de capitais de residentes. Esses movimentos, juntamente com as decisões autônomas dos investidores internacionais, levaram a uma intensa volatilidade da taxa de câmbio e dos ciclos de investimento externo, no Brasil e na América Latina em geral. Os governo responderam à instabilidade cambial, provocada pelo exercício livre desses direitos de propriedade, com elevação de juros. Com isso, transferiram mais renda financeira, potencialmente dolarizada, para o setor privado e os bancos em particular. Com o corte dos gastos públicos, afetaram o crescimento dos mercados internos e do emprego. (…) A subordinação da política econômica aos mercados financeiros deve-se à força dos interesses criados pelo rentismo e pela riqueza dolarizada. A subordinação desses interesses às necessidades do desenvolvimento da nação constitui hoje, como no passado, base para qualquer projeto nacional de desenvolvimento.»

9. Carlos Medeiros tem toda razão. Sem controlar os fluxos de capital não se consegue controlar a volatilidade do câmbio e o nível das taxas de juros, e sem isso a política econômica perde graus de liberdade essenciais para o bom manejo de todas as variáveis macroeconômicas.

Mas, talvez o quadro seja ainda mais grave. O aumento do peso dos circuitos rentistas e a transformação de todo capital, potencialmente, em capital estrangeiro destrói a possibilidade de um desenvolvimento capitalista em bases nacionais e coloca a sociedade brasileira diante de disjunções radicais: ou aceita transformar-se, única e exclusivamente, em um espaço para fluxos de curto prazo do capital, na forma de um mercado mais ou menos emergente, conforme sua capacidade de adaptar-se aos ciclos do sistema internacional; ou, para desenvolver-se com autonomia, precisará romper com esse tipo de inserção internacional, o que exigirá realizar profundas reformas internas e reorganizar as bases sociais de seu sistema de poder político.

O Brasil precisa decidir se continuará aceitando sua histórica condição de economia reflexa, buscando em cada momento a melhor estratégia oportunista para extrair algumas vantagens dessa condição, ou se deseja construir um projeto próprio, que dê ao país capacidade decisória suficiente para dirigir o seu destino. É de soberania que estamos falando. O governo Lula adotou claramente a primeira opção – a da adaptação oportunista -, que corresponde à opção das elites brasileiras, e por isso lambuza-se com a possibilidade de vender mais soja e minério de ferro para uma China que cresce. Não percebe a ironia da história: a própria China é o melhor contra- exemplo para sua política. Na segunda metade do século XX, ela recusou o lugar subalterno que o sistema internacional sempre lhe reservara, fez profundas reformas internas, alterou seu sistema de poder, pagou o preço associado a essas decisões e desponta como potência no século XXI. Antes dela, no século XIX, outro grande país periférico fez isso: os Estados Unidos. Em vez de adotar a eterna fuga para a frente oportunista, ambos construíram projetos, cada um ao seu modo.

O descontrole atual decorre de decisões de natureza política que vêm sendo tomadas há muitos anos. Chegamos a um ponto em que qualquer decisão do Estado brasileiro, para não ser sabotada, precisa receber o aval do sistema financeiro nacional e internacional, e o preço desse aval, entre outros, é o de garantir muito maior rentabilidade às aplicações financeiras feitas aqui. Os efeitos disso sobre o nosso desempenho econômico e o nosso equilíbrio social são sabidamente desastrosos.

Alterar essa situação exige uma decisão política de novo tipo que, por sua vez, se desdobra em escolhas de natureza técnica.

Obter soberania envolve custos. Isso nos remete a outra questão de fundo implicada na controvérsia sobre controle de capitais: queremos mesmo nos autogovernar? Se a resposta for sim, parece óbvio que precisamos criar instituições, leis, regras e práticas capazes de reconstruir o espaço monetário nacional e impedir que movimentações especulativas de capital financeiro desarticulem nossa economia. É o ponto de partida para um novo projeto.

PS. No fechamento deste artigo, recebemos a informação de que o IBGE cometeu um erro metodológico no cálculo do produto interno bruto (PIB) divulgado no fim de março deste ano, que apontou um crescimento positivo de 1,7% sobre o último trimestre de 2003. Refeitos os cálculos, com as bases consideradas adequadas, chega-se a um crescimento negativo de 1,2% no mesmo período. Alertado, o IBGE publicou em sua página na internet uma nota confusa, quase ininteligível, em que reconhece a necessidade de proceder à correção de metodologia, mas adia maiores esclarecimentos para o segundo semestre de 2004. Todos esperamos que o corpo técnico do IBGE mantenha a tradição de seriedade que lhe é própria e divulgue para a sociedade, o quanto antes, os verdadeiros números do desempenho da economia brasileira, desfazendo todas as dúvidas.

Laboratório de Políticas Públicas da UERJ
Fundação Rosa Luxemburgo
Projeto de Análise da Conjuntura Brasileira
Página na internet: www.outrobrasil.net
Economia e Política Econômica
César Benjamin (com Rômulo Tavares Ribeiro)
Data do fechamento: 6 de junho de 2004