Segundo o Dicionário de Política, organizado por Noberto Bobbio, a palavra hegemonia vem do grego e significa «direção suprema». Esta era a designação do poder absoluto dado aos chefes militares durante a guerra. Por isto mesmo estes generais gregos eram chamados egemónes. O termo também designava a supremacia de uma cidade-Estado sobre as outras dentro […]
Segundo o Dicionário de Política, organizado por Noberto Bobbio, a palavra hegemonia vem do grego e significa «direção suprema». Esta era a designação do poder absoluto dado aos chefes militares durante a guerra. Por isto mesmo estes generais gregos eram chamados egemónes.
O termo também designava a supremacia de uma cidade-Estado sobre as outras dentro de um determinado sistema de aliança. Afirma ele: «A potência hegemônica exerce sobre as demais uma preeminência não só militar, como também freqüentemente econômica e cultural, inspirando-lhe e condicionando-lhe as opções, tanto por força do seu prestígio como em virtude de seu elevado potencial de intimidação e coerção; chega mesmo a construir um modelo para as comunidades sob sua hegemonia». Existe uma visão mais restrita de hegemonia ligada ao domínio na força das armas. Foi neste sentido que o termo foi recuperado pela esquerda maoísta nas décadas 1960-1970 para definir a política externa dos Estados Unidos e da URSS, considerados imperialista e social-imperialista. E assim foi incorporado na cultura política de uma certa tradição comunista: auto-intitulada marxista-leninista. O conceito tem aqui uma conotação claramente negativa e regressiva.
O conceito hegemonia no interior do marxismo
Conforme demonstraram Christinne Buci-Gluksmann e Perry Anderson o termo hegemonia, ao contrário do que muitos pensam, tem uma longa tradição no movimento socialista internacional. Ele foi um dos problemas políticos centrais do movimento social-democrata russo desde o final do século XIX. A noção de hegemonia (não o termo) já estava presente nos textos do fundador do marxismo russo, Jorge Plekhanov.
Ainda em 1901 o dirigente socialista russo Axelrod afirmou: «Em virtude da posição histórica de nosso proletariado, a social-democracia russa pode obter hegemonia na luta contra o absolutismo». No mesmo ano Lênin, pela primeira vez, utilizou o termo numa carta a Plekhanov, ao defender a necessidade de um jornal político nacional, escrevendo que este era uma condição para se construir a «verdadeira hegemonia» da classe operária na revolução russa. Pelo menos até 1905 existia uma certa unidade entre as diversas tendências da social-democracia em torno da necessidade da conquista da hegemonia do proletariado na revolução democrática burguesa que se aproximava. Esta unidade se forjou na luta que travavam contra o economicismo.
Afirmou Perry Anderson: «hegemonia era assim uma das mais usadas e mais familiares noções nos debates do movimento operário russo antes da Revolução de Outubro». Segundo ele: «Após a revolução, este termo caiu quase em desuso o partido bolchevique (…) Forjado para teorizar o papel da classe operária em uma revolução burguesa, ele tornou-se inoperante com o advento da revolução socialista». Uma tese que havia surgido com Trotsky nos anos posteriores à Revolução Russa.
Esta afirmação deve ser relativizada, pois a questão da hegemonia adquiriu maior dramaticidade no interior do Partido Comunista Bolchevique, justamente, na segunda metade da década de 1920. Ela se tornou um dos pontos centrais no debate entre a direção bolchevique, encabeçada por Stálin e Bukharin, e a oposição trotskista-zinovievista.
Sobre as posições de Trotsky afirmou Bukharin: «A conclusão era que a ditadura da classe operária e do campesinato era impossível; um conflito dos mais graves deveria produzir-se entre a classe operária e o campesinato. Era, em suma, a negação da hegemonia do proletariado».
Por sua vez afirmou Stálin: «Lênin combatia os partidários da revolução permanente, não porque afirmassem a continuidade da revolução, posto que o próprio Lênin mantinha o ponto de vista da revolução contínua, mas porque eles subestimavam o papel do campesinato, que é a maior reserva do proletariado; porque eles não compreendiam a idéia da hegemonia do proletariado». Ao lado da direção bolchevique se colocou Gramsci que afirmou: «Declaramos agora que consideramos fundamentalmente justa a linha política da maioria do CC do PC da URSS e que neste sentido, com toda certeza, deverá se pronunciar a maioria do Partido italiano, se se tornar necessário (…) nos impressiona o fato de que a atitude das oposições envolva toda a linha política do CC, atingindo o coração mesmo da doutrina leninista da ação política de nosso Partido na URSS. São colocados em discussão o principio da hegemonia do proletariado; são prejudicadas e postas em perigo as relações fundamentais de aliança entre operários e camponeses, ou seja, os pilares do Estado operário e da revolução».
Continuou o líder dos comunistas italianos: «É fácil fazer demagogia nesse terreno; é difícil deixar de fazê-la quando a questão foi posta nos termos do espírito corporativo e não nos termos do leninismo, da doutrina da hegemonia do proletariado (…) Na ideologia e na pratica do bloco das oposições, renasce plenamente toda a tradição da social-democracia e do sindicalismo, que ate agora impediu o proletariado de se organizar com classe dirigente».
Trotsky na mesma época contrapunha o termo e a política de hegemonia do proletariado com os de ditadura do proletariado. Na sua famosa História da Revolução Russa ele escreveu: «A idéia popularizada e oficialmente aceita da hegemonia do proletariado na revolução democrática (…) não significava de maneira alguma que o proletariado utilizaria a insurreição camponesa para colocar na ordem do dia (…) suas próprias tarefas históricas, quer dizer a passagem a uma sociedade socialista. A hegemonia do proletariado na revolução democrática se distinguia claramente da ditadura do proletariado e se opunha a ela nas polêmicas. O partido bolchevique foi educado nestas idéias desde 1905». Trotsky acreditava que isto teria sido superado a partir de abril de 1917 com a «adesão» de Lênin a sua tese sobre a revolução permanente.
Uma das provas do erro de Trotsky é que o termo hegemonia também compareceu assiduamente nas resoluções dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista do qual ele havia não só participado como dirigido. Manteve-se o termo e o conteúdo dado por Lênin em 1905 (hegemonia como capacidade de direção política exercida pela classe operária sobre o conjunto das classes subalternas e exploradas, especialmente os camponeses).
No IV Congresso da IC este conceito foi ampliado e num parágrafo de uma de suas resoluções chegou-se a afirmar: «A burguesia sempre procura separar a política da economia porque entende muito bem que se ela tem sucesso em enquadrar o proletariado em uma referência corporativa, nenhum sério perigo ameaçará a sua hegemonia». Estendia assim o conceito de hegemonia para entender a própria dominação burguesa. Mas este tema seria pouco desenvolvido pela Internacional.
É bom lembrarmos que Gramsci viveu na Rússia Soviética e trabalhou na própria IC entre os anos de 1922 e 1923. Portanto, ele não só conhecia muito bem essas resoluções – inclusive colaborando na sua elaboração -, como as utilizou amplamente para construir a estratégia revolucionária dos comunistas na Itália.
Possivelmente o conceito hegemonia perdeu força no interior do movimento comunista internacional entre os anos de 1928 e 1934, quando após o VI Congresso da IC predominou uma linha esquerdista e sectária – intitulada «classe contra classe» ou «terceiro período» – que subestimou a política de Frente Única estabelecida no III e IV congresso e adotou uma política voluntarista e insurrecional inadequadas a situação européia de então. Era época dos termos como social-fascismo, para definir a social-democracia. Esta política somente seria oficialmente abandonada no VII Congresso da IC em 1935, quando a política de Frente Única seria retomada e ampliada, tendo em vista o enfrentamento com o nazi-fascismo. Abria-se a fase das frentes populares antifascistas e antiimperialistas.
OBS: para saber a posição deste colunista sobre a relação entre o conceito de hegemonia desposado por Lênin e por Gramsci consultar o artigo «Lênin e Gramsci e a questão da hegemonia», publicado no livro Questões de Partido – atualidade do partido leninista no Brasil, organizado por Walter Sorrentino
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* Augusto César Buonicore, Historiador, doutorando em Ciências Sociais pela Unicamp, membro da Comissão editoral da revista Princípios e do conselho editorial da revista Crítica Marxista, do Comitê Central do PCdoB e do Conselho de Redação da revista Debate Sindical.