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O que mudou depois de Lula?

Fuentes: brasil de fato

Avaliar é comparar fatos com valores. Nesta avaliação dos dois primeiros anos do governo Lula, escolhemos como termo de comparação o projeto de construção nacional. Usando a fórmula sintética e precisa de Caio Prado Jr.: em que medida estes dois anos de governo contribuíram para acelerar a transição entre o «Brasilcolônia de ontem para o […]

Avaliar é comparar fatos com valores. Nesta avaliação dos dois primeiros anos do governo Lula, escolhemos como termo de comparação o projeto de construção nacional. Usando a fórmula sintética e precisa de Caio Prado Jr.: em que medida estes dois anos de governo contribuíram para acelerar a transição entre o «Brasilcolônia de ontem para o Brasil-Nação de amanhã»?
Três aspectos dessa transição serão examinados: redução da desigualdade; aumento da autonomia; e organização política do povo. Quanto à redução da desigualdade social, cabe dizer: considerados os dois anos, o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) foi medíocre, não chegando a afetar o PIB per capita. Melhorou em 2004, mas não teve impacto maior – seja na questão do emprego (que aumentou pouco diante do tamanho da força de trabalho), seja na dos salários (de fato, o salário médio diminuiu no biênio).
O governo fez um esforço para exigir a formalização das relações de emprego – o que poderia se refletir em melhoria dos salários. Apesar disso, porém, o número de trabalhadores com carteira profissional assinada é ainda inferior ao dos trabalhadores sob contrato informal, o que ajudaria a explicar o fato escandaloso de a renda de quase um quarto (23,8%, segundo o Ipea) dos trabalhadores brasileiros ser inferior ao salário-mínimo.
Tendo herdado uma situação de desigualdade secular, o governo poderia alegar a impossibilidade de reverter esse quadro em apenas dois anos. O argumento seria aceitável se, nestes dois anos, medidas eficazes tivessem sido tomadas para alterar as estruturas viciadas que criam a desigualdade. Isso, porém, não foi o que se viu.
A reforma agrária não saiu do papel. A meta de assentamento de um milhão de famílias, em quatro anos, sufi ciente para gerar uma dinâmica virtuosa de redistribuição da riqueza no campo, foi cortada pela metade, e essa metade não está sendo executada.
Não se falou de reforma urbana – outra medida estrutural de redução de desigualdades sociais. Nem mesmo se pôs em marcha um programa tradicional de construção de casas populares de dimensões minimamente proporcionais ao tamanho do problema.
Não cogitou também da utilização dos impostos para redistribuir renda – instrumento de que se serviram os países desenvolvidos da Europa e da América do Norte para reduzir as distâncias entre ricos e pobres. O que se viu foi uma verdadeira fúria arrecadadora, completamente indiferente ao fato de que o sistema tributário vigente onera desproporcionalmente as camadas mais pobres da população.

PROGRAMAS SONOROS E INSUFICIENTES

Na falta de reformas estruturais, o combate à desigualdade social limitou-se aos gastos assistenciais do Estado. Nesse plano, o que se constata é que, após dois anos de Fome Zero, Bolsa Escola, Renda Mínima e outros tantos programas com títulos sonoros, o governo não conseguiu desfazer-se inteiramente do conceito neoliberal dos «gastos sociais focalizados». O anunciado vetor «estruturante» dessas transferências de renda aos setores mais pobres não passou do terreno das boas intenções. A desproporção entre os recursos alocados (mesmo que tenham sido superior em relação aos do governo passado) e o tamanho das demandas da imensa massa de pobres frustrou esse objetivo. Minúsculas transferências de renda não geram uma dinâmica social favorável ao protagonismo político e social dos marginalizados. Em outras palavras: apesar das boas intenções, não se conseguiu sair da linha tradicional do assistencialismo praticado pelas elites dominantes e destinado meramente a atenuar situações gritantes e explosivas de pobreza.
O grande argumento dos conservadores no terreno da redistribuição de renda é a necessidade de haver renda para ser distribuída. Assim, o governo estaria cuidando de cumprir essa condição prévia a uma política redistributiva vigorosa. Os resultados obtidos são motivo de vanglória, pois a economia cresceu, em 2004, a uma taxa próxima de 5% – o melhor resultado em nove anos. A taxa de crescimento é exibida como prova do acerto da política econômica. Mas, para colocá-la em perspectiva, convém compará-la com o crescimento das economias da Venezuela (18%); Uruguai (12%); Argentina (8,2%); Equador (6%); Panamá (6%); Chile (5,8%), no mesmo período. Nesse contexto mais amplo, cabe indagar se os proclamados 5% do Brasil serão mesmo o resultado de uma atilada condução da economia ou de uma conjuntura expansionista do mercado internacional, dadas as performances dos Estados Unidos e da China. Qual a garantia de que essa taxa se manterá por algum tempo?
Mas o ponto central da polêmica redistributiva não é esse. Mesmo que a taxa de 2004 se mantenha por cinco, dez e até mais anos (o que nenhum economista se arrisca a prever), se o esquema estrutural de repartição da renda não for alterado, a situação de desigualdade social será substancialmente a mesma, ainda que num patamar de renda um pouco superior.
A conclusão desta análise é de que não houve, nos dois primeiros anos do governo Lula, nenhum resultado significativo em termos de redução das desigualdades sociais.

AJUSTE NEOLIBERAL CONTINUA

Para medir o desempenho do governo Lula no plano da redução da dependência – a segunda dimensão desta avaliação – a analise precisa abranger dois aspectos: o econômico e o político.
No econômico, o fato básico e chocante é constatar a continuidade do processo de ajuste estrutural da economia brasileira aos cânones do modelo neoliberal. reforma da Previdência Social; remoção do entrave constitucional à autonomia do Banco Central; reforma do Poder Judiciário; e Lei de Falências: toda essa legislação estruturante, patrocinada a ferro e a fogo pelo governo petista, enquadra-se rigorosamente na receita do Consenso de Washington – Estado fraco e mercado livre.
A política econômica seguiu as mesmas pegadas. Tudo se subordinou ao mesmo mote: «Construção da confiança» (confidence building, como se lê nos manuais que instruíram a equipe econômica) dos centros do capitalismo financeiro no governo do Brasil. Para conseguir essa confiança, foram feitas concessões injustificáveis às multinacionais da energia e das telecomunicações, foram dadas isenções indevidas aos especuladores e investidores estrangeiros, fez-se «vista grossa» às transgressões das madeireiras estrangeiras às normas de proteção das florestas; e sancionou- se o retrocesso da legislação ambiental, a fim de favorecer as multinacionais dos transgênicos. Sem falar na manutenção de um superavit primário incompatível com o atendimento mínimo das demandas sociais e com a necessidade urgente de recuperar a infra-estrutura econômica do país.
Este inventário das medidas estruturais e conjunturais só leva à conclusão de que, após dois anos de governo Lula, o Estado brasileiro tornou-se mais débil e menos equipado para executar políticas econômicas, pois um número maior de decisões relevantes foi transferido para centros decisórios externos.
Na dimensão política da questão da dependência, o governo e o Itamaraty conseguiram «empurrar a Alca com a barriga»; torpedear a cessão da base de Alcântara; criar o G-22; derrotar, pela primeira vez na história das negociações comerciais, propostas apoiadas conjuntamente pelos Estados Unidos e pela Europa. É verdade que nenhum dos resultados favoráveis obtidos é definitivo, e que o brilho desse desempenho ficou esmaecido pelo inexplicável envio de tropas brasileiras para servir como biombo das obscuras manobras da diplomacia estadunidense e francesa no Haiti.

FRAGMENTAÇÃO DA ESQUERDA

Isto posto, pode-se entrar no exame do terceiro eixo da análise: a organização política do povo – um aspecto essencial, pois todos sabemos que redução da desigualdade e autonomia não são dádivas dos ricos e das potências estrangeiras. Pelo contrário, são conquistas arrancadas desses poderosos à custa de muita luta e de muito sacrifício. Requerem, portanto, povo consciente, organizado e mobilizado.
Neste plano, encontra-se, sem dúvida, o pior resultado do governo Lula nestes dois primeiros anos. Para começar, a condução política do governo submeteu-se integralmente aos padrões tradicionais da corrupta elite brasileira: conchavos, toma-lá-dá-cá; alianças espúrias; financiamento obscuro das campanhas eleitorais – nada diferente das práticas condenáveis do governo Fernando Henrique Cardoso no relacionamento com a «base de apoio» parlamentar e partidária. Esse comportamento serviu apenas para confirmar o ceticismo de grande parte da população com tudo o que diz respeito à política («são todos farinha do mesmo saco») e para desmoralizar as vanguardas populares que, durante duas décadas, lutaram para convencer o povo de que o PT era diferente.
À decepção com o comportamento ético seguiu-se o espanto diante da falta de medidas que sempre fizeram parte do programa do partido e do discurso de Lula durante toda sua vida política. Os indígenas, por exemplo, não conseguiam entender por que o governo não demarca a reserva Raposa Serra do Sol; as duzentas mil famílias que correram para o campo assim que souberam da eleição do Lula não se conformam de continuar na beira das estradas ou em áreas ocupadas, sob a mira dos jagunços; os ambientalistas viram frustradas suas esperanças de uma ação decisiva de repressão ao desmatamento e à penetração dos transgênicos; os atingidos por barragens não conseguem receber as indenizações a que têm direito; os sindicalistas autênticos reclamam do valor do salário-mínimo e contra a proposta para a estrutura sindical; sem falar nos idosos, golpeados pela nova legislação previdenciária. Um rosário de decepções.
Tendo em vista que todas essas demandas constituíam as bandeiras de luta das vanguardas populares, pode-se concluir que, hoje, o movimento popular está mais fraco, mais confuso, mais dividido do que dois anos atrás. Para se ter uma idéia disto, basta atentar para o fato de que todas as tendências internas do PT «racharam» e que vários sindicatos importantes desligaram-se ou estão em processo de se desligar da CUT. Os demais partidos de esquerda e movimentos populares do campo e da cidade também não escaparam desse processo. Vêemse todos diante do dilema: romper com o «seu governo» ou recuar, a fi m de não confrontá-lo diretamente. O governo Lula não reprime a esquerda ou o movimento popular, porém, provoca sua diluição e fragmentação.
Esta avaliação aparentemente não se ajusta ao sentimento do povo, pois as pesquisas de opinião mostram aprovação de quase 70% ao desempenho do presidente Lula e de 45% ao seu governo. Por que a dureza da crítica, se o «povão» está contente?
É cedo para tirar conclusões definitivas dessas pesquisas. Indicariam elas que Lula está substituindo sua base de apoio – o PT e os movimentos populares combativos – e enveredando para um novo tipo de «populismo», fundado no seu carisma pessoal e na transformação do PT em uma formidável máquina eleitoral? Ou as pesquisas retratam apenas uma situação conjuntural que pode se desfazer rapidamente, se 2005 não trouxer os benefícios que a massa popular ainda espera?
Quaisquer que sejam as respostas, uma coisa é certa: o governo Lula está obrigando todos os que lutam para acelerar a transição do «Brasil-Colônia de ontem ao Brasil-Nação de amanhã» a um profundo esforço de revisão de suas estratégias, de seu discurso e de suas práticas.

* Plinio Arruda Sampaio é diretor do Correio da Cidadania. É fundador do PT e líder do partido na Constituinte (1987/1988)