Sempre que ocorrem crimes hediondos, que nos revoltam pela brutalidade, pela estupidez extrema, a discussão acerca das causas da violência é reacesa. Isso acontece agora, no caso do assassinato de cinco integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) na Fazenda Nova Alegria, em Felisburgo, Vale do Jequitinhonha, Estado de Minas Gerais. Uma versão crível para […]
Sempre que ocorrem crimes hediondos, que nos revoltam pela brutalidade, pela estupidez extrema, a discussão acerca das causas da violência é reacesa. Isso acontece agora, no caso do assassinato de cinco integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) na Fazenda Nova Alegria, em Felisburgo, Vale do Jequitinhonha, Estado de Minas Gerais. Uma versão crível para explicar crimes como este é que o vale que separa a elite cheia de privilégios dos milhões de brasileiros ficou mais violento porque surgiu um novo contingente de esfarrapados que trocou, nas últimas décadas, a pobreza pela miséria. Este grupo de pessoas está numa posição em que ele não tem como escapar da violência. Ou seja: de um lado, a nova lógica liberal criou essa legião de excluídos com necessidades tremendas, e, de outro, a sociedade e sua velha estrutura não têm interesse em satisfazê-las.
Como resultado, estamos divididos, cada vez mais, entre os que lutam com todas as forças pela sobrevivência e os que nutrem ódios sociais. As relações políticas, moldadas por esta situação, passam ao largo da capacidade de diálogo e de raciocínio confluente. Em várias localidades, já vivemos a desagregação social em sua face mais cruenta: o pobre sentindo muita revolta por se perceber confinado na base da pirâmide social e o rico achando que a solução mais eficaz para erradicar a pobreza é o extermínio dos pobres. Não há, na ideologia da elite, um segundo pensamento sobre as ações sórdidas que são empreendidas quando ela se depara com situações de exacerbação dos conflitos sociais. Não há um arcabouço de valores equilibrando suas decisões sobre como agir. Não há travas éticas, não há pudores morais. Vale tudo para combater as ações rebeldes dos pobres.
Primeiro Mundo para poucos
No Brasil, é certo, nunca tivemos o sentimento de que pertencemos, como sociedade, a um mesmo conjunto. Mas, de alguma forma, construímos um conceito de unidade nacional que costurava o país antes do «milagre econômico» – mesmo enfrentando a ideologia de teor feudal com traços escravocratas dos liberais. A questão nacional, bem ou mal, sempre esteve em pauta em boa parte do século 20 e chegou a ser a base da plataforma política de alguns governos. De repente, com o golpe militar de 1964, veio a afluência restritiva, excludente. A tentativa de instaurar por aqui um Primeiro Mundo para poucos, como uma espécie de clube privado – tese que ficou famosa na formulação daquela calamitosa teoria do bolo, elaborada pelo ex-ministro Delfim Netto e levada a cabo nos anos de ditadura militar -, partiu definitivamente o Brasil em dois países antagônicos.
Uma das manifestações mais visíveis deste esgarçamento do tecido social brasileiro é a contradição muito falada e pouco debatida entre o agronegócio e a luta pela posse da terra. Aparece aqui, nesta questão, o fato de que uma solução progressista para essa equação implica em enfrentar os desafios para a construção de um projeto nacional adequado à realidade atual. A questão nacional e a questão agrária estão intimamente relacionadas – há entre elas uma relação constante de causa e efeito. O latifúndio e o grande capital sempre andaram de mãos dadas na história da República. E não é difícil observar que da independência aos nossos dias não se operou transformação substancial nos quadros político e social no Brasil. Por vários motivos peculiares ao nosso desenvolvimento histórico, a posse da terra ainda é fator determinante para a existência de relações pré-capitalistas no campo.
Erro grave de estratégia nacional
Na Conferência Nacional Terra e Água, anteontem, em Brasília, o presidente do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), Rolf Hackbart, pôs o dedo na ferida. «Temos que saber em que ponto vamos nos unificar porque o outro lado é muito organizado, sob a etiqueta do chamado agrobusiness. Sob essa etiqueta está Adriano Chafik, que matou os trabalhadores em Minas Gerais. Ele se diz do agrobusiness. Sob essa etiqueta está o proprietário que baleou os acampados ontem lá em Mato Grosso do Sul», disse ele. Há, nessa relação, uma dualidade conservadora entre o agronegócio e a «ortodoxia» liberal da política macroeconômica brasileira. Os senhores de terras, que estiveram na crista dos acontecimentos reacionários em todo esse tempo, estão agora unidos aos que praticam a exportação intimamente ligada aos interesses do capital financeiro internacional.
Afora o lado criminoso, portanto, há ainda o aspecto predador dessa simbiose. Exportar mais era uma urgência que o Brasil precisava atacar e vencer, está claro. No entanto, seguir os passos de países que fundamentaram a expansão de suas economias na exportação – como Japão, Coréia do Sul e, mais recentemente, China, Índia e Vietnã – para o Brasil é um erro grave de estratégia nacional. É triste constatar que sempre tivemos melhores condições de adotar esse modelo e não adotamos. Daí surge, talvez, a idéia defendida por alguns – possivelmente de forma sincera – de que devemos, mesmo que tardiamente, moldar nosso caminho à luz desse paradigma vitorioso de crescimento econômico utilizando o que temos de melhor: nossa agricultura farta. O problema é que a nossa relação de povo com o Estado nunca foi racional. Historicamente, ou ele nos bateu ou uns poucos se locupletaram à custa dele. Ou seja: antes de defender qualquer modelo econômico é preciso atentar para o papel do Estado.
Temos vocação de mercado de massas
O essencial nesta questão é que há necessidades específicas que distinguem o Brasil daquelas economias, e que tornam o modelo de desenvolvimento adotado naquela região incompatível com nossa realidade econômica atual. Eles precisam importar para produzir. São, na verdade, países importadores. Por isso tiveram que aprender a exportar. Vendem chips e desenvolvem semicondutores porque precisam gerar divisas para comprar matérias-primas. O modelo exportador, está claro, é uma imposição para economias que vivem sob a pressão constante de importações essenciais. Trocando em miúdos: a resposta daqueles países às suas agriculturas pobres e insuficientes foi a industrialização. Desistiram da terra, o que de passagem implodiu as estruturas oligárquicas que os mantinham presos ao passado, e construíram fábricas. E assim moldaram suas economias para atender o mercado interno.
O principal argumento contrário à adoção do modelo agro-exportador pelo Brasil, portanto, possivelmente seja o tratamento que ele dá ao mercado doméstico. Nosso país, por suas dimensões e peculiaridades, tem a vocação de mercado de massas. Além disso, é um país que precisa ampliar e distribuir a riqueza, integrando à economia os milhões de brasileiros que ainda não podem ser considerados cidadãos. O modo progressista de realizar essa tarefa é transformar esse contingente de miseráveis em consumidores. O modelo econômico agro-exportador vai em outra direção: alimenta a ciranda financeira internacional com divisas que são consumidas pelo pagamento de juros, concentra riqueza e o grosso dos consumidores que gera mora nos países ricos.
Nossas tradições jogam contra nós
O ponto comum entre as necessidades de fortalecimento do nosso mercado interno e manter nossa participação na economia internacional, repito, atende por um nome: Estado. De um lado, é preciso estimular nossa economia a níveis que ateiem fogo no mercado doméstico. De outro, é preciso exigir dos parceiros comerciais, como eles exigem de nós, liberalidade em relação à entrada dos produtos brasileiros em seus mercados. O mercado financeiro ganharia menos e teria que desbastar-se de modo a caber dentro do projeto nacional. É possível supor, ainda, que o aumento da atividade produtiva – estimulada por um mercado externo de acesso mais livre e por um mercado interno aquecido por salários maiores e preços menores – geraria aumento de arrecadação, possibilitando maiores investimentos públicos.
Esse é um caminho factível de desenvolvimento que se oferece a economias pobres como a nossa. De resto, num país como o Brasil, em que o problema agrário é tão agudo, onde existem grandes extensões de terra férteis mas incultas e inaproveitadas, onde há uma enorme massa de trabalhadores necessitada de terra e onde há também um amplo mercado potencial, não é possível processar o desenvolvimento sem que este atinja seriamente o campo. É possível que essa atitude não ocorra tão facilmente, pelo menos em um primeiro momento. A lei, no Brasil, sempre esteve a serviço de quem detém o poder. O Brasil é ainda o país da tortura medieval e dos assassinatos impunes para quem não tem onde se socorrer. Como resultado, está disseminada pela sociedade a noção de que a lei não é igual para todos, de que a Justiça não é justa. Ou seja: nossas tradições jogam contra nós. Mas é preciso enfrentá-las.
*Jornalista, autor dos livros «Maurício Grabois – Uma Vida de Combates» e «Testamento de Luta – A Vida de Carlos Danielli», integra a equipe do Vermelho e o Conselho de Redação da revista Debate Sindical, é membro da Comissão Estadual de Formação (Cefor) do PCdoB no Estado de São Paulo e foi diretor de imprensa do Sindicato dos Metroviários de São Paulo.