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Entrevista a Jesús García Brigos

Pensar o neoliberalismo para fazer a luta

Fuentes: Brasil de fato

Os revolucionários não podem tomar os escritos clássicos do socialismo como se fossem verdades absolutas. Essa é a lição que dá, com exclusividade aos leitores do Brasil de Fato, o filósofo cubano Jesús García Brigos, considerado um dos maiores conhecedores da teoria de Karl Marx. Para ele, a luta socialista não tem uma fórmula pronta, […]

Os revolucionários não podem tomar os escritos clássicos do socialismo como se fossem verdades absolutas. Essa é a lição que dá, com exclusividade aos leitores do Brasil de Fato, o filósofo cubano Jesús García Brigos, considerado um dos maiores conhecedores da teoria de Karl Marx. Para ele, a luta socialista não tem uma fórmula pronta, pois depende das características de cada país, mas tem um objetivo claro e comum: acabar com a contradição entre capital e trabalho.

Brasil de Fato – Costuma-se falar na América Latina como sendo um bloco coeso de países, com características similares. Qual é a situação atual do continente?
Jesús García Brigos – A América Latina, exceto por Cuba, que vive uma situação diferente, tem, de fato, um tipo, e não nível, de desenvolvimento parecido. Nos países do continente, não importa o tamanho ou a riqueza destes, vive- se um processo de polarização da sociedade: uma enorme quantidade de pessoas marginalizadas e um grupo muito reduzido de detentores de todas as riquezas. O sistema não se sustenta por si só, pois não pode sobreviver com tamanhas desigualdades, e se torna totalmente dependente dos países mais ricos, que estabilizam a situação política, social e econômica no continente. As potências têm cada vez mais o poder para controlar os destinos. Ao mesmo tempo, a deterioração das condições de vida mostra uma perversão do sistema, que não encontra equilíbrio, nem encontrará, acho, e as populações vão despertando. Na América Latina, está o principal foco para o surgimento de uma alternativa global para o mundo, pois há luta, organização e conscientização nos povos latino-americanos. O diferencial do continente não é a atuação de seus governos, mas a mobilização popular.

BF – Em seus estudos, Marx fala de um exército de reserva, condição necessária para a existência do capitalismo. As pessoas marginalizadas do continente têm essa função?
Brigos – O povo dos países da América Latina é a sobra. Não vale para nada, nem tem interesse para os capitalistas. Muitas dessas pessoas, abandonadas a seus próprios destinos, estão transformando-se em verdadeiros militantes, lutando pela mudança social, pois sofrem na pele as perversões do sistema. O neoliberalismo deixou mais clara essa necessidade de lutar para atingir mudanças sociais.

BF – E quanto a Cuba?
Brigos – Até o colapso do bloco socialista, no início dos anos 90, não sofreu o impacto do neoliberalismo. Depois, nós cubanos tivemos que encontrar um equilíbrio entre o projeto de desenvolvimento socialista e a objetiva infl uência do capitalismo no país. Não é uma situação simples, pois a economia cubana não pode viver isolada, precisa ter conexões, mas a sociedade precisa criar mecanismos para não alterar a concepção de país que foi construída. Por exemplo, as empresas de Cuba precisam ter competitividade de mercado, sem prejudicar as condições de vida dos trabalhadores. Diferentemente dos países capitalistas, em Cuba, empresários não despedem funcionários para obter mais lucros. Durante muitos anos, o país voltou sua economia para a indústria açucareira, mas, nos últimos anos, esta não era mais rentável. A partir de discussões com a sociedade, criou-se um outro projeto de desenvolvimento econômico, transferindo trabalhadores para outras áreas da indústria. Nos modernizamos, mas não afetamos um princípio sequer de nossa sociedade. É possível aumentar os lucros mantendo o nível social, essa é a mensagem de Cuba para o mundo. O país é pequeno, rodeado de capitalismo por todos os lados, e precisa combater todas as infl uências do neoliberalismo, apresentando um novo modelo de sociedade sustentável. Cuba está em contato direto com países capitalistas e precisa tirar relações positivas desses contatos; esse é o desafi o, pois precisa manter a autonomia econômica e cultural frente a um sistema de dominação mundial.

BF – Em entrevista ao Brasil de Fato, edição 75, o fi lósofo húngaro István Mészáros afi rmou que o neoliberalismo só se mantém com a militarização do mundo. Quais são os refl exos disso para Cuba?
Brigos – Para Cuba, a militarização, engendrada pelo capitalismo, se faz presente desde 1959, ano da revolução cubana. Para muitos países, incluindo o meu, os Estados Unidos representam uma ameaça permanente; ameaça à qual os cubanos já estão prontos para resistir, até mesmo do ponto de vista militar. Nos anos 80, Cuba começou a desenvolver a concepção de «guerra de todo o povo». Cuba tem uma força armada moderna, mas a defesa do país não depende só desta, pois todo o povo organizado enfrentaria qualquer tipo de ameaça militar. Todo mundo em Cuba recebe treinamento militar e sabe que posição tem que tomar no caso de uma agressão. Os Estados Unidos sabem que, para acabar com o regime socialista cubano, teriam que varrer todo o país do mapa, e isso a comunidade internacional não permitiria. O Iraque, para os Estados Unidos, está sendo um inferno. Mas a invasão de Cuba seria um inferno ainda maior, pois no país asiático havia muitas divisões internas e confl itos tribais, e o povo cubano não sofre desses males, pois está unido em todos os níveis.

BF – Há duas estratégias do neoliberalismo no continente: uma para a América Latina e outra para Cuba?
Brigos – É a mesma estratégia. A única diferença é que as grandes potências, principalmente os Estados Unidos, encontraram uma reação diferente em Cuba. A estratégia é a mesma: expansão imperialista para fortalecer o sistema sistema dominante. Houve outras experiências de resistência na América Latina e os Estados Unidos usaram estratégias parecidas com as que usam contra Cuba, como no Chile de Salvador Allende e, agora, na Venezuela de Hugo Chávez. Nesses países, enquanto a sociedade se organizava de forma gradual e pacífi ca, agentes do imperialismo, como empresários e donos de jornais, introduziram a violência para impedir a resistência ao sistema dominante.

BF – O neoliberalismo é uma etapa diferente do capitalismo. Por exemplo, Marx não analisou um sistema em que a maioria dos trabalhadores fosse sobra do sistema; para ele, quem levaria à revolução seria a classe proletária. Isso modifi ca as estratégias de resistência e organização no mundo e, de forma mais especí- fi ca, na América Latina?
Brigos – Para começar, é preciso saber o que Marx entende por classe, interpretada de modo muito mecânico, como se fosse apenas a ocupação que certa pessoa tem. Na verdade, uma classe é uma questão de relações, uma posição que alguém tem dentro do sistema de relações sociais. O conceito de proletariado também é usado de modo errôneo. Em seu sentido etimológico, o termo se refere a pessoas que não possuem riqueza. Assim, as pessoas que o capitalismo descarta ou as que são exploradas têm as mesmas condições: são seres humanos que não têm nada além de sua capacidade de trabalhar. O operário de uma fábrica e uma pessoa que não encontra trabalho, pois se tornou «sobra do sistema», estão na mesma situação na perspectiva do capitalismo. O operário vende ao capital a capacidade de dispor de sua força de trabalho. O trabalhador marginalizado, de modo semelhante, alienou ao capital a capacidade de dispor de sua força de trabalho. Ele está em uma situação em que oferece sua força de trabalho, mas não recebe nada. O operário está na mesma situação, mas recebe algo em troca. O trabalhador marginalizado é tão proletário quanto o operário de uma fábrica. Na análise que fazia Marx, no século 19, os operários apareciam como tendo mais capacidade de lutar contra o sistema de dominação. Hoje, isso mudou porque o modelo de organização do capitalismo mudou. Não há mais fábricas monstruosas, como existiam no início do século passado. Hoje, a produção se divide em pequenas unidades, que podem até estar em países diferentes, e os trabalhadores têm difi culdades para se organizar. Também há um volume cada vez maior de trabalhadores deixados como sobra do sistema, que não são utilizados diretamente pelos capitalistas no modelo de organização. Como unir os trabalhadores dispersos e os marginalizados para fazer pressão no sistema se tornou o grande desafi o para a classe proletária e os movimentos revolucionários de cada país. O primeiro aspecto a ser levado em conta é que cada país tem suas próprias condições e características, e estas precisam ser levadas em conta. O segundo é que, mesmo com as especifi cidades nacionais, a luta precisa ser global, pois o capital atua em todo o mundo. O capitalismo age em todos os países do mesmo modo, mesmo que se manifeste de modo diferente.

BF – Para Marx, uma das causas das revoluções eram as contradições do capitalismo. Se o sistema mudou, entrando no estágio do neoliberalismo, também se modifi caram as contradições?
Brigos – Há uma contradição fundamental do sistema e uma contradição principal em cada país. A primeira continua a mesma: entre o capital, como um sistema de relações, e o trabalho. No plano histórico, as manifestações desse confl ito surgem de diversas formas – e aí ocorrem as contradições principais de cada país. Buscar a resolução das contradições principais, vinculadas a essas manifestações particulares, é o meio para acabar com a contradição fundamental. No caso cubano, em 1959 o povo queria romper com o jugo do capital, mas precisou primeiro derrotar sua contradição específi ca e principal, a ditadura de Fulgencio Batista. Foi então preciso tomar o poder para enfrentar a contradição fundamental, isto é, resolver a relação entre capital e trabalho em Cuba. É a partir dessa segunda etapa que a revolução passa a ser realmente socialista. Foi preciso tomar o poder político para expropriar o capital. O objetivo fi nal precisa estar bem claro. Os revolucionários podem não o mencionar, por razões políticas práticas, já que termos como socialismo e comunismo não são bem-vistos no geral, mas precisam manter o rumo. No início da revolução cubana, o presidente Fidel Castro não falava de socialismo, pois sabia que o povo falava horrores do sistema. Após nacionalizar as empresas e expropriar os grandes latifundiários, chegou ao povo e disse: «Isto é socialismo!» Face a uma realidade política que lhe era favorável, o povo respondeu: «Somos então socialistas!»

Quem é
Professor de filosofia na Universidade de Havana (Cuba), Jesús García Brigos é considerado um dos principais conhecedores das obras do pensador alemão Karl Marx. Em diversos países do mundo, Brigos organiza seminários internacionais para discutir a atualidade do marxismo.