«A Venezuela trava uma batalha contra o imperialismo norte-americano. O diabo tem nome e sobrenome. O chefe da oposição venezuelana se chama George W. Bush». Presidente Hugo Chávez. A revolução bolivariana na Venezuela, iniciada a partir da vitória eleitoral de Hugo Chávez em dezembro de 1998, apresenta inúmeros aspectos distintivos que conferem uma dinâmica avançada […]
«A Venezuela trava uma batalha contra o imperialismo norte-americano. O diabo tem nome e sobrenome. O chefe da oposição venezuelana se chama George W. Bush». Presidente Hugo Chávez.
A revolução bolivariana na Venezuela, iniciada a partir da vitória eleitoral de Hugo Chávez em dezembro de 1998, apresenta inúmeros aspectos distintivos que conferem uma dinâmica avançada e progressista a esta experiência tão original na América Latina. Na prática, ela deflagrou a construção de uma alternativa ao neoliberalismo – meio que aos trancos e barrancos, mas com um norte aprumado. Este modelo contra-hegemônico inclusive aponta para mudanças estruturais neste país contra a própria lógica do capitalismo. Impulsionada pela dinâmica implacável da luta de classes, contrapondo-se ao golpismo da oligarquia e à ingerência imperialista, ela pode se firmar como um elo de aproximação de objetivos maiores, socialistas.
Como sintetiza Rafael Vargas, importante assessor do atual governo, «o processo chavista não tem como meta o socialismo, mas a luta pela soberania nacional e pela integração latino-americano. Entretanto, ele é radical na busca por transformações estruturais» [1]. Com um programa que ganha cada vez maior nitidez antineoliberal e um crescente protagonismo das massas populares, ele tem obtido conquistas em três áreas nevrálgicas: defesa da soberania nacional e da integração regional; ampliação da democracia, com novos mecanismos de participação direta; e priorização dos interesses dos trabalhadores e dos setores excluídos. O segredo da vitalidade da revolução bolivariana reside, basicamente, nestes três expressivos avanços.
Isto explica tamanho desespero e ódio da oligarquia local e do imperialismo ianque. A elite racista teme perder os seus seculares privilégios, banhados pelo «ouro negro» do petróleo; e os EUA receiam os efeitos negativos na economia doméstica, na geopolítica da região e na subjetividade do sofrido povo da América Latina. «A Venezuela é um exemplo que os estadunidenses querem eliminar. Se este exemplo se fortalece cada vez mais, os povos do Brasil, Argentina, Equador, Chile e Bolívia dirão: ‘se os venezuelanos podem, nós também podemos’. Por isso, os EUA estão tão alterados. Por isso, investem milhões de dólares para ajudar a estúpida oposição venezuelana», comenta o renomado intelectual paquistanês Tariq Ali [2].
SOBERANIA E INTEGRAÇÃO
A defesa da soberania é uma das principais tônicas da revolução bolivariana. Esta vertente marcadamente nacionalista congrega setores hoje majoritários das Forças Armadas, parcelas residuais do «empresariado produtivo» e a esmagadora maioria dos assalariados e dos despossuídos da sociedade. O nó estratégico da questão nacional é o controle do petróleo, a principal fonte de riquezas do país – responsável por 86% da pauta de exportação. Apesar desta riqueza natural, a nação vivia na miséria e era totalmente dependente do mercado externo. Segundo a FAO, 49% dos seus 24 milhões de habitantes tinham renda anual inferior a US$ 230 e 80% vegetavam na pobreza; 70% do que os venezuelanos consumiam vinham do exterior.
Desde a descoberta do petróleo, na década de 20, esta riqueza serviu à ostentação de uma ínfima parcela da sociedade, parasitária e rentista – parte dela residente em luxuosas mansões em Miami. Também serviu aos interesses lucrativos das poderosas corporações empresariais do setor e às estratégias expansionistas dos EUA. A partir, principalmente, da aprovação da Lei dos Hidrocarburantes, em 2001, e da derrota do locaute petroleiro em fevereiro de 2002, esta realidade começou a mudar. O Estado passou a exercer total controle sobre a poderosa PDVSA, antes uma «caixa preta» apartada da sociedade, e reorientou os lucros da exportação do petróleo para a diversificação da atividade produtiva e para ousados programas sociais.
Segundo Emir Sader, o controle do petróleo permitiu a retomada do desenvolvimento interno e a redução da vulnerabilidade externa. «A economia cresceu 19,8% no primeiro semestre de 2004, contrastando com a queda de 27,8% no mesmo período de 2003, causada pela greve petroleira. Prevê-se um crescimento superior a 8% para o conjunto de 2004. As reservas internacionais chegavam a US$ 25 bilhões em maio deste ano, superiores aos 14 bilhões de um ano atrás…, enquanto que o ‘risco-país’ baixava para 600 pontos. As taxas de juros baixaram de 30%, há um ano, para 11,51%… O desemprego diminuiu para 15,6%, a inflação baixou para 1,3% e o investimento cresceu 72% no primeiro quadrimestre de 2004» [3].
A riqueza do petróleo deixou de ser apropriada por uma minoria para se tornar uma poderosa alavanca do crescimento da economia interna, da superação da dependência externa e da justiça social. Para viabilizar esta orientação num mundo sob o império da globalização neoliberal, o governo alterou suas relações com as poderosas corporações do petróleo e o governo dos EUA. Hugo Chávez reforçou os laços com os seus sócios da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), rompendo a lógica neoliberal anterior de elevar as cotas de produção para rebaixar seus preços em benefício das potências capitalistas. Quando eclodiu a carnificina no Iraque, ele foi enfático na condenação da política belicista do governo Bush.
Ao mesmo tempo, a Venezuela aposta todas suas fichas no processo de integração latino-americana para evitar o isolamento e agregar forças diante do império. Chávez se pronuncia contra a Alca, «uma proposta de colonização» e lança a idéia da Aliança Bolivariana das Américas (Alba). Neste esforço de integração, torna-se membro do Mercosul, firma o compromisso de dar aos 11 países centro-americanos tratamento preferencial na venda de petróleo e estreita relações com Cuba. Agora, propõe a criação da PetroAmérica, integrando as empresas petrolíferas da região; anuncia o projeto da empresa binacional de energia com a Argentina; e sugere um canal latino-americano de TV «para se opor à manipulação da mídia dos EUA».
Num esforço pedagógico, Hugo Chávez sempre realça a dimensão nacional do processo bolivariano. «A Venezuela trava uma batalha contra o imperialismo norte-americano. O diabo tem nome e sobrenome. O chefe da oposição venezuelana se chama George W. Bush. Que ninguém ache que estamos lutando contra um inimigo débil. Muito pelo contrário: estamos liderando uma batalha contra o império mais poderoso que já existiu sobre a face da terra. A luta é entre a pátria ou a colônia e nós já decidimos que seremos uma pátria livre e não uma colônia norte-americana», afirmou Chávez num comício recente.
AMPLIAÇÃO DA DEMOCRACIA
Outra característica original da experiência bolivariana é a ampliação dos espaços democráticos, que têm possibilitado acelerada politização da sociedade. Devido à opção de iniciar a transição pela esfera política, atuando com cautela no terreno econômico, o governo investiu de imediato no desmonte da apodrecida estrutura institucional-jurídica da Venezuela. No escombro do bipartidarismo, herdado do Pacto de Punto Fijo, estimulou a participação de parcelas antes totalmente alijadas do poder. Num curto espaço de tempo, ocorreram sete eleições nacionais que contagiaram o povo e garantiram maior legitimidade ao governo.
O ponto alto deste processo se deu com a aprovação da Constituição Bolivariana, ratificada por 71% dos eleitores num plebiscito em fins de 1999. Sem ferir o método representativo, ela prevê vários mecanismos de democracia direta. Fixa, por exemplo, quatro tipos diferentes de referendos: o consultivo, que submete à consulta popular temas estratégicos como o da privatização do petróleo; o aprobatório, que decide sobre a ratificação de tratados internacionais, como o da Alca; o que prevê a anulação de decretos do Executivo; e o revogatório, o famoso artigo 72, que afirma que «todos os cargos e magistraturas de eleição popular são revogáveis». A revogabilidade, algo inédito no mundo, é prova cabal da avançada democracia no país.
Através do único canal estatal do país, a Venezolana TV, o governo orienta diariamente os trabalhadores a se sindicalizarem, a se filiarem aos partidos e a participarem dos movimentos comunitários – numa cena inusitada para os brasileiros. «A concessão de cédulas de identidade a mais de 5 milhões de venezuelanos é mais uma prova do esforço do governo em reconhecer seus cidadãos e, com isto, garantir a extensão universal do exercício real de todos os direitos civis e políticos. Esse processo devolve a dignidade a um povo e o incorpora a vida política», relatam, impressionados, dois correspondentes estrangeiros [4].
Todo este processo de ampliação da democracia não tocou nos direitos da raivosa minoria golpista. Para o incomodo de setores de esquerda, que exigem atitudes mais duras contra a reação, existe total liberdade de manifestação e expressão. A mídia privada tornou-se o principal «partido» da oposição. Segundo Marta Harnecker, «mais do que liberdade de imprensa, o que há é libertinagem, o uso dos meios de comunicação de maneira antiética; eles ignoram as ações do governo, desinformam e mentem. A sua programação de entretenimento e a propaganda comercial foram substituídas por: a) cobertura, minuto a minuto, das ações opositoras; b) manipulação de imagens para super-dimensionar a sua força; c) a exacerbada propaganda contra o governo democraticamente eleito; e d) instruções continuas para os seus atos de protesto» [5].
Apesar da manipulação da mídia mundial, o que há na Venezuela é uma democracia avançada, inclusive com certos vícios liberais. Como diz o relatório do deputado espanhol Emílio Menéndez, membro de uma delegação oficial do Parlamento Europeu, «todos reconhecem que não existem presos políticos e que as liberdades de reunião e associação são garantidas. Não existe censura e a liberdade de imprensa, incluindo a libertinagem, é, para desgraça do governo, absoluta». Como prova, ele anexou um artigo do maior jornal do país, El Universal: «Um governante corrupto e repressivo deve ser remetido para outro mundo… Em particular, quando é homicida, efeminado, falastrão, ignorante, caipira, mulherengo…». Haja democracia!
CONQUISTAS SOCIAIS
A defesa da soberania e da integração regional e a ampliação da democracia têm resultado em melhorias sensíveis na qualidade de vida dos venezuelanos. As conquistas sociais da revolução bolivariana são a sua vitrine mais vistosa. Para desespero da oligarquia racista, que encara o povo como «turba e lúmpen» [6], o governo prioriza a questão social – repassando fartos recursos da exportação do petróleo para programas de reforma agrária, saúde, educação, entre outros, o que nunca ocorreu na história do país. Essa é hoje a maior fortaleza do processo bolivariano, como já reconhece a própria Coordenadoria Democrática, que reúne os partidos e as ONGs da oposição conservadora.
A Constituição Bolivariana deu o primeiro passo no rumo desta alteração da agenda política da nação; já as 49 leis habilitantes, baixadas no final de 2001, materializaram estes avanços legais; e, após superar o locaute patronal e retomar o crescimento da economia, os programas sociais deslancharam de vez. Muitas conquistas neste terreno hoje já são reconhecidas pelos organismos internacionais, como FAO, Cepal e outros, e são cantadas em verso e prosa pelos estudiosos da revolução bolivariana. Emílio Corbière, por exemplo, fez um levantamento minucioso dos efeitos práticos das leis habilitantes e concluiu: «Este é o mistério do porque Chávez não foi derrubado» [7]. Entre as dezenas de itens listados, vale ressaltar:
«Construção de 3 mil escolas bolivarianas, nas quais 1 milhão de crianças têm café da manhã, almoço, lanche e educação integral, que inclui programas de informática, esporte, teatro, dança e cinema; 150 mil casas construídas em dois anos com material de qualidade; direito de propriedade sobre a terra urbana em bairros populares para mais de 5 milhões de habitantes; Lei do Imposto de Renda que, pela primeira vez, pune com prisão os ricos que não pagam tributos; Lei da Terra e criação do Instituto Nacional de Terras, que já beneficiou milhares de produtores rurais; 2 mil cooperativas organizadas desde 2002; suspensão da privatização das indústrias elétricas, de alumínio, água e petróleo prevista pelos governos neoliberais».
Mais recentemente, o governo acelerou a implantação dos programas sociais emergenciais – batizados de Missões. Um deles, o Barrio Adentro, garante médicos residentes em cada povoado em período integral. Diante das carências no setor, firmaram-se convênios com Cuba prevendo a troca de petróleo por serviços na área de saúde. Atualmente, já atuam na Venezuela cerca de 13 mil médicos cubanos, que moram em favelas, em cômodos cedidos pelos próprios moradores, e realizam o atendimento preventivo. Casos mais graves são encaminhados à rede pública. Segundo o último balanço oficial, este programa atendeu em seis meses, gratuitamente, a 45.641 milhões de casos; realizou 15 milhões de atividades educativas; e resultou na visita direta a 4.2 milhões de famílias. «Cerca de 280 vidas são salvas semanalmente», registra o texto.
Já na área da educação, o governo criou o Misión Robinson, para extirpar o analfabetismo com o uso de técnicas cubanas reconhecidas pela ONU; a Misión Ribas, para incorporar os jovens na rede pública de ensino médio; e a Misión Sucre, para dar acesso à universidade aos jovens carentes. Para a Unesco, o país caminha para se tornar «território livre de analfabetos». Também foram registrados avanços na reforma agrária, com a entrega de 1,5 milhão de hectares de terra para 130 mil famílias de camponeses. Já através da Mision Vuelvan Caras, o Estado tem subsidiado frentes de trabalho e avança o processo da «economia solidária». Houve um salto de 800 para 4 mil cooperativas na atual gestão, incorporando 30 mil famílias.
Para José Cademartori, estes avanços sociais só são possíveis porque a revolução bolivariana imprimiu um novo rumo ao país, rompendo com a lógica neoliberal e reforçando o papel do Estado, a partir do controle estratégico do petróleo. «O país não depende mais do FMI e os especuladores internacionais não podem mais afetar a sua estabilidade financeira… Numa matéria chave para superar o modelo neoliberal, ele deteve a especulação e a mortal fuga de capitais e agora exerce o controle das importações e o uso de dólares». Em decorrência desta guinada econômica, neste ano «a Venezuela terá o maior crescimento da América Latina, superando de longe os países vizinhos», e avançará ainda mais nas conquistas sociais. E conclui: «Chávez e seu governo se converteram na vanguarda da revolução contra o neoliberalismo» [8].
NOTAS
1- Gilberto Maringoni. «A Venezuela que se inventa». Editora Fundação Perseu Abramo, SP, 2004.
2- Claudia Jardim e Jonah Gindin. «Tomar el poder para transformar el mundo». Rebelión, 31/07/04.
3- Emir Sader. «Petróleo ajuda a Venezuela». Agência Carta Maior, 26/06/04.
4- Fran Pérez e Cristina Xalma. «15/08, Venezuela: Chávez o um proyecto de país». Rebelión, 28/07/04.
5- Marta Harnecker. «Venezuela: uma revolución sui generis». Mimeo, janeiro de 2003.
6- Em entrevista nesta semana à jornalista Patrícia Poleo, uma visceral anticomunista, um líder da direita, Enrique Paris, usou estes adjetivos contra os setores populares e sugeriu um «golpe militar tipo Pinochet».
7- Emilio Corbière. «El misterio de Hugo Chávez». Rebelion, 17/01/03.
8- José Cademartori. «Venezuela en la avanzada de la revolución contra el neoliberalismo». Rebelion, 04/08/04.
* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e organizador do livro «Para entender e combater a Alca» (Editora Anita Garibaldi).