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A revolução que nos espera

Limites da estratégia das ONG’s e das promessas do terceiro setor

Fuentes: Correspondencia de Prensa

A perspectiva histórica pode nos ajudar a compreender porque é uma quimera o projeto do terceiro setor, apresentado como uma terceira via entre o que seria o neoliberalismo e uma saída anticapitalista. Embora estude o passado, o interesse da História pelo tempo presente enuncia, ele mesmo, um programa de trabalho, indivisível da política. A História […]

A perspectiva histórica pode nos ajudar a compreender porque é uma quimera o projeto do terceiro setor, apresentado como uma terceira via entre o que seria o neoliberalismo e uma saída anticapitalista. Embora estude o passado, o interesse da História pelo tempo presente enuncia, ele mesmo, um programa de trabalho, indivisível da política. A História do tempo presente é sempre a História do passado recente, porque o presente é sempre uma linha imaginária – constantemente móvel – entre o que foi e o que será. Aqui reside a responsabilidade da História, uma disciplina que não deve se esquivar dos desafios prospectivos colocados pelo futuro. Ao contrário das ciências da natureza ou até das ciências lógico-matemáticas, a História até hoje não afetou a vida das pessoas. Merece, contudo, a atenção da militância.

Infelizmente, mesmo na esquerda, o debate da política fica reduzido ao balanço das últimas flutuações eleitorais, enquanto se secundariza a avaliação do impasse do Brasil nos últimos vinte anos. Ele se impõe, porém, dramático e imponente. Desde as Diretas, assistimos a eleições de dois em dois anos. Nunca tivemos um período tão longo de estabilidade democrático-liberal e, no entanto, a economia de país periférico, relativamente privilegiado pela dimensão do seu mercado interno, nunca viveu uma estagnação tão longa. A decadência é crônica. Se a estratégia reformista da direção lulista, hegemônica na esquerda, fosse plausível, parece razoável concluir que o intervalo de vinte anos deveria ter sido suficiente para conquistar reformas. Na oposição ao governo Federal até 2002 e, desde então, no poder, é inescapável concluir que, se uma concertação pudesse ser possível para elevar o salário mínimo, reduzir a jornada de trabalho, garantir o pleno emprego, derrotar o latifúndio e fazer a reforma agrária, aumentar a escolaridade média de forma significativa – ou qualquer uma das inúmeras outras reivindicações que levaram milhões às lutas – já deveríamos poder avaliar os resultados. Não é difícil concluir que o balanço é desolador. O reformismo fracassou em toda a linha. Entretanto, sob a sua ruína, renascem entre muitos dos melhores ativistas da juventude ilusões movimentistas, semi-anarquistas e semi-assistencialistas, embaladas pelas promessas anti-partido das ONG’s.

Não há perspectiva de mudança sem a luta pelo poder

A idéia que defende que se pode mudar o mundo sem lutar pelo poder não é nova. O movimento socialista se dividiu em meados do XIX entre os estatistas e os anti-estatistas, e o marxismo se construiu como o vocabulário dominante dos movimentos operários europeus em uma luta duríssima contra ambos. Na Alemanha, na década de 60, o partido operário em formação tinha duas correntes, uma maioria influenciada por Lassale, que atuava em Berlim, e outra por Marx e Engels, no exílio. Na França e na Rússia, onde as idéias de Lassale não tinham repercussão, Proudon e Bakunin eram majoritários. Lassale era estatista – defendia, hegelianamente, que o Estado poderia se colocar acima do conflito de classes como representante do projeto da nação e do povo – e politicista, a ponto de negociar secretamente com Bismarck, o primeiro-ministro do Kaiser prussiano, uma estratégia para a unificação da Alemanha. Proudon e Bakunin eram ambos anti-estatistas. Mas, enquanto o francês era reformista – acreditava em estratégias como o barateamento do crédito e o cooperativismo – o russo era carbonário, defendia uma versão proletária da perspectiva conspirativo-jacobina dos blanquistas.

Cento e cinqüenta anos depois, a História demonstrou que não ocorreu nenhuma passagem pós-capitalista sem ruptura. Sem a conquista do poder, as massas exploradas e oprimidas pelo capital, no centro ou na periferia do sistema, não conseguiram mudar os seus destinos. Demonstrou, também, que sem auto-organização democrática todas as transições ao socialismo degeneraram em Estados burocráticos que usurparam o poder das massas trabalhadoras ou camponesas.

O poder nunca existiu, por suposto, como uma abstração. Ele se expressou de forma objetivada na forma de Estados, regimes e governos, para não insistir na força das relações econômico-sociais que materializam relações de propriedade, que expressam interesses de classe. No entanto, alguns Estados foram mais permeáveis à mudança do que outros. A Alemanha do final do século XIX, sob Bismarck, ou a França, sob Jules Ferry, estenderam o acesso á escola pública gratuita. No meio século «longo» que vai da derrota das revoluções de 1848 até á I guerra mundial a jornada de trabalho foi reduzida em, praticamente, toda a Europa. Um processo semelhante de conquista de novos direitos ocorreu nos trinta anos do pós-guerra. Mas, há pelo menos trinta anos, uma outra tendência vem se afirmando. Os direitos vêm sendo reduzidos.

Reformas só foram concedidas para evitar revoluções

A História pode nos ajudar a compreender porque a época em que o capital concedia reformas se esgotou. Nos países centrais, tanto governos da direita, quanto da socialdemocracia ameaçam retirar direitos conquistados ao longo de gerações, como a seguridade social. O desafio da História é oferecer uma contextualização para esse impasse. Nas recentes eleições municipais os partidos do regime se alternaram na TV prometendo, hoje, as reformas que não fizeram ontem quando estavam no poder. Os dilemas são simples. Não se fazem omeletes sem quebrar ovos. Como os partidos do regime não querem contrariar o capital que, por sua vez, os financiam, os debates eleitorais são um labirinto sem saída.

Mas, de novo, por quê os reformistas, quando chegam ao governo, não fazem reformas? Porque a burguesia não está disposta. O capital só aceitou concessões duradouras em dois contextos históricos: ou em fases de crescimento sustentado, que, por sua vez, exigiram uma estabilidade no Sistema Mundial de Estados que assegurasse uma expansão do mercado mundial – como no final do XIX – ou diante do perigo da extensão de revoluções, como no pós-guerra. Se as reformas deixaram de ser possíveis por vias negociadas e gradualistas, é porque se desenvolveram novas condições históricas que dificultam a concertação. Sem disposição de luta revolucionária não se conquistam reformas e, quando o capital se vê encurralado, e admite concessões, elas são transitórias e permanecem ameaçadas. Não é difícil compreender que Lula e Mandela prefeririam ser bombeiros com bombons. Mas, chegaram ao poder em uma etapa em que não lhes resta outro papel senão destruir direitos, para ajudar um novo ciclo de acumulação. Terão o destino de Walesa, e serão esquecidos e desprezados.

No entanto, como a sociedade vive dilacerada por uma crise que não pára de se agravar, e mudanças se impõem, não sendo possível realizá-las de forma negociada, não deixaremos de ver novas situações revolucionárias na América Latina. As massas trabalhadoras não assistirão o seu empobrecimento sem oferecer resistência. Em última análise, é uma questão de tempo. O tempo de uma experiência com o PT e com o CNA (Congresso Nacional Africano o partido de Mandela).

Revoluções, no entanto, despertam paixões. Temidas pelos reacionários como um excesso da vontade, um exagero de anseios, enfim, um abuso da política, um assombro ou até um aborrecimento – uma vingança da História – as revoluções foram satanizadas pelos poderosos de todos os tempos. Tomar os destinos coletivos de assalto, a essência do projeto emancipador do socialismo, pode parecer perturbador. Oitenta anos depois de Lênin, o desafio permanece uma aventura diante do futuro, uma esperança suspensa no tempo. No Brasil, não há porque não admitir, a espera tem sido longa. Afinal, quanto mais velas, menos certezas, quanto mais anos, menos confiança, quanto mais tempo, menos urgência.

Entretanto, agora que o Governo Lula conclui seu segundo ano, e se revela sem subterfúgios que a promessa do PT – um pacto social desenvolvimentista – foi uma ilusão de papai noel, em que a economia pode até se recuperar segundo os impulsos cíclicos, mas a renda do trabalho continua em queda, muitos se perguntam se a alternativa não seria o trabalho voluntário.

A assistência social terceirizada das ONG’s é o programa do FMI

A saída oferecida pelo programa das ONG’s – o «small is beautiful» – não é um retrocesso ao vigoroso otimismo dos reformistas do início do século XX, mas ao programa pré-marxista do início do XIX. O desalento com o fracasso do PT explica a ressurreição do programa pré-político da infância do movimento socialista. No lugar da luta contra o capitalismo, ou da estratégia da sua reforma, surge a perspectiva, incomparavelmente mais modesta, de oferecer os serviços de assistência social que o Estado já não está mais disposto a arcar. Desistir de lutar pelo poder – o abandono da política – não é uma escolha de estratégia alternativa. Seria, somente, um outro beco sem saída. Não é casual que a estratégia das políticas sociais compensatórias – as políticas públicas monitoradas pelo Banco Mundial – seja a coqueluche ds ONGs que recebem financiamento das organizações do Sistema ONU, como a UNESCO e a FAO. O que é espantoso é que milhares de ativistas honestos se sintam atraídos por organizações que, mesmo participando despudoradamente dos FSM em Porto Alegre, nem sequer escondem que são financiadas pelo imperialismo.

A estratégia das ONG’s tem se revelado tão impotente quanto o eleitoralismo. Mesmo admitindo-se que alguns programas sociais tenham alcançado seus fins – quase sempre como uma terceirização das políticas públicas – a questão de fundo permanece insolúvel. A escala do drama nacional impõe desafios que vão muito além da assistência social. Sem o poder, não há como pensar no futuro.

As instituições que exercem o poder sempre resistiram às mudanças, apoiadas nas forças de inércia histórica. Só quando o impulso das revoluções anti-aristocráticas vitoriosas já tinha aberto o caminho, e a prosperidade econômica permitia a estabilidade política confortável – como em meados do XIX – passagens gradualistas do Estado feudal absolutista aos modernos Estados capitalistas democrático-liberais foram possíveis. Em épocas de crescimento econômico sustentado, as margens para concessões e negociações de pactos sociais com o mundo do trabalho sempre foram mais largas, como no pós-1945, em especial nos países do centro do sistema. Mas, quando a crise econômica traz a deflação, e se manifesta na redução abrupta da produção e do consumo, como expressão da necessidade de recuperação da taxa média de lucro em queda, o espaço para reformas é eliminado. Surgem, ao contrário, as contra-reformas, para garantir a rentabilidade e segurança do capital. A frustração crescente com o Governo Lula resulta deste paradoxo absurdo: vinte e cinco anos foram necessários para que os reformistas chegassem ao poder, porém, descobrimos que era, afinal, um reformismo sem reformas. A assistência social da ONG’s que terceirizam funções do Estado não é uma estratégia alternativa.

* Professor do CEFET/SP, autor de As Esquinas Perigosas da História, situações revolucionárias em perspectiva marxista. Doutor em História Social pela USP, e militante do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). www.arcary.cjb.net/