Depois de trinta anos, na seqüência do terrível golpe de 11 de setembro de 1973, em Santiago do Chile, a esquerda mundial olha de novo para a América Latina. Lula estaria mais para Allende ou para Walesa? Os contextos históricos pareciam muito diferentes. Todos chegaram ao poder por eleições, e foram eleitos depois de uma […]
Depois de trinta anos, na seqüência do terrível golpe de 11 de setembro de 1973, em Santiago do Chile, a esquerda mundial olha de novo para a América Latina. Lula estaria mais para Allende ou para Walesa?
Os contextos históricos pareciam muito diferentes. Todos chegaram ao poder por eleições, e foram eleitos depois de uma longa experiência política de lutas, que permitiram que o PS e o PC no Chile, o Solidarinosc na Polônia e o PT no Brasil se consolidassem como forças políticas com influência de massas, mas antes que uma situação revolucionária estivesse aberta.
A insurreição no Equador, em janeiro de 2000, já sinalizava uma nova conjuntura. As jornadas de dezembro de 2001, em Buenos Aires, fulminaram o governo De La Rua, e revelaram que os calendários eleitorais eram insuficientes para conter o mal estar das classes populares. Na Venezuela, o fracasso do golpe contra Chavez, dois anos atrás, um desenlace inusitado, sugeria que o recurso às quarteladas, um padrão na política externa norte-americana nos anos sessenta depois da vitória da revolução cubana, ameaçava radicalizar a luta de classes, no lugar de estabilizar a dominação no continente. E, depois, vieram as eleições no Brasil e Equador. Finalmente, em Outubro de 2003, a greve geral na Bolívia confirmou que estamos em um novo contexto histórico. Derrubando o governo Losada, menos de um ano depois de eleito, e abrindo uma situação revolucionária, a greve geral convocada pela COB (Central Obrera Boliviana) trazia o proletariado de volta a uma posição protagonista.
O governo Lula despertou imensa expectativa, dentro e fora do Brasil. Afinal, era um exemplo de uma alternância eleitoral bem sucedida. Parecia uma alternativa à crise econômica e social provocada pelos governos alinhados com a política inspirada pelo FMI e defendida por Washington, como os de FHC, Menem, Fujimori. Passados mais de um ano da posse, a política do governo do PT se revela em sua plenitude: a preservação de um ajuste fiscal duríssimo, associado a um plano de políticas sociais compensatórias – o Fome Zero – inspirado no modelo das políticas sociais focadas.
A questão de fundo que, entretanto, permanece colocada, é saber se, com esta estratégia, é possível conter a tendência à precipitação de situações revolucionárias, que já levou à derrubada de tantos governos. A perspectiva de baixo crescimento poderá ser compensada pela distribuição de um pouco de dinheiro e cestas básicas para as famílias mais pobres – os chamados excluídos – ou, pelo contrário, não conseguirá bloquear a radicalização política de massas?
O reformismo do Welfare (Bem-Estar Social) do pós-guerra deixou de ser, ainda nos anos 80, a política dominante nos círculos burgueses. Ruiu com Mitterand, que substituiu as políticas sociais universais de extensão de direitos – e do que se aceitava chamar de salário indireto – a partir do segundo mandato, quando os economistas e sociólogos da escola da regulação de Paris foram para o poder, e depois passaram a exercer grande influência no Vaticano e FMI, com Michel Canmdessus, e sua relação com o polonês no poder em Roma.
Eis a terrível promessa que desmorona. O terceiro reformismo histórico, herdeiro dos possibilistas bernsteinianos, e dos reguladores keynesianos, desistiram das reformas. No seu lugar surgiu um novo programa de políticas sociais focadas, as chamadas rendas mínimas, que beneficiam alguns. Esse é o laboratório que Washington está fazendo no Brasil, depois de ter apoiado os planos de Duhalde e de Kirshner, que procuram controlar a situação argentina com distribuição de cestas básicas e renda mínima, que já atingem, talvez, até 20% da população economicamente ativa. Lula e o PT bem que gostariam, como todos os reformistas, que o reformismo com reformas – obras públicas, elevação do salário mínimo, reforma agrária, acesso a créditos de longo prazo para a compra da casa própria, ampliação da escolaridae básica, etc… – fosse possível, mas vivemos em uma época histórica em que é preciso disposição revolucionária para lutar por reformas.
Um novo marco histórico: estagnação e recolonização
Há mais de vinte anos, as sociedades latino-americanas entraram, de conjunto, em uma longa estagnação – crescimento muito baixo, inferior a 3% ao ano, na média das décadas de oitenta e noventa – com poucas variações do produto nacional, mesmo quando a economia dos EUA se recuperava, como entre 1992 e 2000. A mobilidade social intensa do período histórico anterior se interrompeu. Pela primeira vez, uma geração de jovens descobriu que não podia aspirar a uma vida melhor que a da geração de seus pais. As tensões sociais que o processo de urbanização e industrialização do pós-guerra conseguiu absorver, porque permitia a esperança de uma ascensão individual, deixou de ser possível. Esse fator estrutural explica a instabilidade da dominação capitalista na região.
Entretanto, ainda que estejamos diante de uma vaga de mobilizações revolucionárias continental, nenhuma ruptura aconteceu. Nem uma ruptura na inserção dos países latino- americanos no Sistema Mundial de Estados, nem uma ruptura social. O mapa político latino- americano, contudo, já mudou substancialmente, e ainda vai mudar mais. Chavez, Lula, Gutierrez e Kirchner e, em futuro próximo – possivelmente – a Frente Ampla no Uruguai e o MAS de Evo Morales na Bolívia, são governos que se explicam, mesmo considerando as evidentes diferenças, pelo esgotamento dos ajustes neoliberais promovidos no continente nos anos noventa.
O marxismo analisa todos os fenômenos da vida político-social – a começar pela caracterização dos governos – a partir de um ângulo de classe. Esse é um procedimento incontornável. Todas as novas forças políticas que chegaram ao poder, por diferentes vias e em contextos diversos, constituíram governos do capital. Mas, tão importante quanto, há que considerar que são governos burgueses anômalos, porque não são os homens do capital que estão no poder.
Diante deles, parecem desenhar-se quatro cenários que denominaremos, de via chilena, via russa, via inglesa e via argentina. As metáforas históricas são sempre perigosas porque, como sabemos, a história não se repete, e os esquemas são somente um esforço de procurar constantes e padrões, mas não deixam de ser um instrumento de análise.
A agonia de governos reformistas sem reformas
Na primeira via, a «chilena», por analogia com Allende em 1973, a Frente Popular abriu as portas para a contra-revolução. O Governo não mobiliza as massas no sentido de uma ruptura, mas não atende, também, às pressões do imperialismo, demonstrando-se incapaz de conter a pressão de suas bases sociais, e é derrubado por um golpe fascista. É uma hipótese descartada, porque o governo do PT não só atende a pressão dos banqueiros, como se prepara para enviar, vergonhosamente, tropas para o Haiti, legitimando a invasão franco-americana.
Na segunda, a «russa», por analogia com Kerensky e o intervalo entre fevereiro e outubro de 1917, o governo igualmente fracassa, mas as forças da revolução se antecipam às da contra- revolução. Esse cenário parece implausível, seja pela situação objetiva da luta de classes, que ainda não evoluiu para uma situação revolucionária, seja, também, pela fragilidade das forças na esquerda brasileira com um projeto anticapitalista.
Na terceira, a inglesa, por analogia com os governos do Labour depois de 1945, o governo de colaboração de classes encontra uma situação econômica internacional favorável de crescimento que permite negociar concessões, e articula com sucesso um pacto social e político que estabiliza a crise que o levou a vencer as eleições, e permite a alternância eleitoral sem traumas. Esse plano corresponde aos sonhos «político-eróticos» de Lula, Palocci e Zé Dirceu, mas com o Fome Zero, no lugar do que na Inglaterra, e na Suécia, foram o pleno emprego, a elevação do salário-médio, o aumento da escolaridade e a rede de proteção social. Parece improvável um futuro animador para um reformismo sem reformas em um país da periferia.
Na última e mais plausível, a argentina, por analogia com a eleição de De La Rua em 2000, os novos Governos aplicam, na essência, o mesmo ajuste econômico e político que o FMI exigiu de todos os governos anteriores, e tentam conter as pressões sociais que os elegeram com palavras e Fome Zero. Instala-se uma crise crônica, mas sem uma saída política clara. O desgaste do PT diante de suas bases sociais históricas parece, portanto, inexorável, e enfrentará resistência nas ruas, e dificuldades nas urnas. Não foi diferente na África do Sul, depois da vitória do CNA dirigido por Mandela, e não deveríamos esquecer a experiência pioneira de Walesa e o Solidarinosc na Polônia.
* Doctor en historia en la USP, profesor del CEFET/SP, miembro de los consejos editoriales de las revistas Outubro (Instituto de Estudios Socialistas), Crítica Marxista (Cemarx/Unicamp), Lutas Sociais (Neils/PUC/SP), y del semanario Brasil de Fato